Descoberta rara revela práticas funerárias da Roma Antiga e surpreende por manter o líquido preservado por dois milênios
Uma descoberta inesperada em uma casa da cidade de Carmona, na Espanha, se transformou em um marco na história da arqueologia. Em 2019, uma família realizava reformas em sua propriedade quando se deparou com um túmulo romano escavado na rocha, selado e intacto por cerca de dois mil anos.
O que parecia ser apenas mais um achado arqueológico se revelou algo muito mais curioso e extraordinário: uma urna com cinzas humanas e um vinho antigo ainda em estado líquido.
Uma surpresa entre cinzas e ouro
Dentro do túmulo, os arqueólogos encontraram seis urnas de cremação. Em uma delas, havia restos humanos, um anel de ouro e um recipiente de vidro cheio até a borda com um líquido marrom-avermelhado.
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A princípio, pensou-se que fosse água ou resultado de algum tipo de infiltração. Mas, com o passar do tempo, os estudos comprovaram o que poucos poderiam imaginar.
Cinco anos depois, cientistas confirmaram que o líquido misterioso era vinho romano. Com cerca de dois mil anos, ele se tornou o mais antigo já descoberto em estado líquido. A análise foi liderada pelo químico orgânico José Rafael Ruiz Arrebola, da Universidade de Córdoba.
Preservação rara e intacta
Segundo Ruiz Arrebola, o túmulo escavado na rocha manteve-se selado durante séculos. Isso garantiu uma preservação incomum: sem evaporação, invasões, saques ou presença de microrganismos. A câmara funerária permaneceu intacta, protegendo todos os objetos ali depositados.
O achado foi publicado no Journal of Archaeological Science: Reports. A descoberta supera até mesmo a famosa garrafa de Speyer, encontrada na Alemanha em 1867 e datada do século IV.
Ao contrário de Speyer, o vinho espanhol passou por uma análise química detalhada, o que permitiu identificar a composição e as características originais da bebida.
A urna pertencia a um homem chamado Senicio. Seu nome estava gravado no objeto. Além dos ossos cremados, havia cerca de cinco litros de vinho armazenados no recipiente de vidro, conhecido como olla ossuaria.
Também foram encontrados um anel de ouro com o deus romano Jano e partes metálicas que podem ter pertencido à cama de cremação.
Vinho como símbolo de status na morte
O uso de vinho em urnas funerárias não era inédito no mundo romano. Para a elite, ele fazia parte dos rituais de despedida.
Era uma forma simbólica de acompanhar o falecido na passagem para a vida após a morte. No entanto, esse tipo de homenagem era geralmente exclusivo para os homens.
No mesmo túmulo, arqueólogos também encontraram os restos de uma mulher chamada Hispana. Ela foi sepultada com joias, tecidos e perfumes — objetos considerados mais adequados à figura feminina, segundo os costumes da época.
As mulheres, inclusive após a morte, não podiam receber vinho em suas cerimônias. A prática refletia as rígidas normas sociais da Roma antiga.
O que dizia o vinho?
Degustar o conteúdo da urna não estava nos planos dos cientistas. Mesmo com a curiosidade despertada, os testes foram todos laboratoriais.
Primeiro, foi necessário eliminar hipóteses alternativas. Não havia sinais de umidade externa, infiltração ou contato com o solo. As outras urnas estavam completamente secas. A conclusão foi clara: o líquido era original da época, derramado ali propositalmente durante o enterro.
As análises mostraram que o líquido tinha um pH de 7,5, próximo ao da água. Já os vinhos modernos, em comparação, são mais ácidos, com pH em torno de 3. A diferença é esperada após milênios de alterações químicas.
O ponto mais revelador da pesquisa foi a identificação dos polifenóis, compostos presentes em todos os vinhos. Foram detectados sete tipos diferentes. Eles foram comparados aos polifenóis encontrados nos vinhos atuais da região da Andaluzia, como Montilla-Moriles, Jerez e Sanlúcar de Barrameda.
Os resultados coincidiram. Os pesquisadores concluíram que o vinho da urna era branco, e não tinto como poderia parecer pela coloração atual.
A prova disso foi a ausência de ácido siríngico, um composto que se forma quando os pigmentos do vinho tinto se decompõem. “Procuramos polifenóis exclusivamente no vinho — e encontramos sete polifenóis do vinho”, explicou Ruiz Arrebola.
A semelhança com os vinhos andaluzes modernos sugere que os antigos romanos da região já cultivavam e produziam bebidas com métodos parecidos.
Testemunho líquido de um passado perdido
Essa foi a primeira vez que cientistas puderam estudar um vinho romano ainda em seu estado líquido. Até então, todo o conhecimento sobre bebidas antigas vinha da análise de resíduos secos ou de vestígios absorvidos por vasos de cerâmica.
Com essa descoberta, foi possível observar diretamente a transformação química do vinho ao longo de dois milênios.
Mais do que um objeto de estudo, o vinho encontrado representa uma lembrança preservada. Ele conta uma história de status social, rituais de morte e até do gosto e estilo da bebida em uma época muito distante. “Os romanos eram orgulhosos, mesmo na morte“, disse Ruiz Arrebola. “Eles queriam permanecer na memória das pessoas.”
Os testes não revelaram presença de toxinas, mas, mesmo assim, ninguém se arriscou a provar.
A bebida, selada junto às cinzas de um homem há dois mil anos, serviu a um outro propósito: não para ser degustada, mas para ser lembrada.