Com a nova reforma tributária, o modelo que emprega mais de 100 mil pessoas e ajuda a manter a floresta em pé muda radicalmente, trocando isenções por um complexo sistema de subsídios.
A reforma tributária, promulgada pela Emenda Constitucional nº 132/2023, redesenhou as regras fiscais do Brasil e colocou em xeque o futuro da Zona Franca de Manaus (ZFM). O modelo, historicamente visto como um “paraíso fiscal” por seus robustos incentivos, não será extinto, mas passará por uma transformação profunda que gera incerteza sobre sua competitividade. A principal mudança é a substituição do sistema de isenções fiscais por um novo mecanismo de créditos presumidos, uma espécie de subsídio gerenciado que altera fundamentalmente a operação das empresas no Polo Industrial de Manaus (PIM), responsável por mais de 100 mil empregos diretos.
O impacto dessa mudança transcende a economia. A Zona Franca é amplamente defendida como um modelo de desenvolvimento que, ao concentrar a atividade econômica em Manaus, contribuiu decisivamente para que o Amazonas mantivesse mais de 97% de sua cobertura florestal intacta. Agora, o sucesso do polo industrial e sua função como guardião da “floresta em pé” dependerão da eficácia de um arcabouço legal complexo e ainda não totalmente testado, levantando temores sobre um possível processo de desindustrialização na Amazônia.
O que era a Zona Franca? O “paraíso fiscal” explicado
Para entender o tamanho da mudança, é preciso olhar para o passado. A Zona Franca de Manaus foi criada em 1967 não apenas como um projeto econômico, mas como uma iniciativa geopolítica para integrar a Amazônia ao restante do Brasil e garantir a soberania nacional sobre um território vasto e isolado. O modelo foi desenhado para compensar as enormes desvantagens da região, como a ausência de estradas conectando Manaus aos grandes centros consumidores do Sudeste e os custos logísticos elevados, que dependem dos transportes fluvial e aéreo.
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A competitividade do polo foi construída sobre um pilar de benefícios fiscais. O principal era a isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), que tornava os produtos fabricados em Manaus, como TVs, celulares e motocicletas, significativamente mais baratos que seus concorrentes nacionais. Somavam-se a isso a isenção do Imposto de Importação (II) para insumos e robustos incentivos de ICMS concedidos pelo governo do Amazonas. Conforme análise do portal Tax Group, o sucesso da ZFM estava diretamente ligado às disfunções do antigo sistema tributário brasileiro; sua vantagem existia por causa da complexidade e da alta carga de impostos que a reforma visa corrigir.
A reforma tributária e o choque de realidade
A lógica da reforma tributária representa uma mudança de paradigma que atinge o coração do modelo manauara. A criação de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual, composto pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), introduz o princípio da tributação no destino. Isso significa que, no novo sistema, o imposto será arrecadado no estado ou município onde o produto é consumido, e não onde ele é produzido.
Essa alteração, por si só, anularia a principal vantagem da ZFM. Se a localização da fábrica não importa mais para a arrecadação de impostos, desaparece o incentivo para uma empresa se instalar em uma região com altos custos operacionais como Manaus. Um produto vendido em São Paulo teria a mesma carga tributária, independentemente de ter sido fabricado na capital amazonense ou em uma cidade vizinha. Foi essa ameaça existencial que forçou uma intensa negociação política no Congresso Nacional para criar um sistema de exceção, garantindo a sobrevivência do polo.
A solução híbrida: como a ZFM sobreviverá no novo cenário?
Para manter a Zona Franca de Manaus de pé, a reforma tributária criou um conjunto de salvaguardas que, na prática, transformam o modelo de incentivos. O primeiro e mais direto mecanismo foi a manutenção seletiva do IPI. Enquanto a maioria dos produtos fabricados no Brasil terá o imposto zerado a partir de 2027, ele continuará a incidir sobre bens produzidos fora de Manaus que concorram com os fabricados no polo industrial. Essa medida funciona como um escudo, mantendo artificialmente a diferença de preço que favorece a produção local.
O segundo e mais complexo mecanismo é a criação dos créditos presumidos de IBS e CBS. Em vez de simplesmente não pagar o imposto (isenção), as indústrias da ZFM receberão créditos tributários para garantir sua competitividade. Como aponta o portal Tax Group, essa mudança transforma a vantagem fiscal da ZFM de uma isenção para um subsídio administrado. Embora a competitividade tenha sido garantida na Constituição até 2073, o modelo agora depende da eficiência do governo em gerenciar e liberar esses créditos, criando uma nova camada de burocracia e dependência do fluxo de caixa público.
O risco real: 100 mil empregos e a ameaça de desindustrialização
A reestruturação imposta pela reforma tributária coloca em jogo o motor econômico do Amazonas. O Polo Industrial de Manaus é uma força que vai muito além dos seus mais de 100 mil empregos diretos, sustentando uma cadeia de serviços e comércio que, segundo estimativas, envolve mais de meio milhão de pessoas. Em 2025, o faturamento projetado do polo é de R$ 216 bilhões, evidenciando sua centralidade para a economia de toda a Região Norte.
A principal preocupação é que a complexidade do novo modelo e a incerteza sobre sua aplicação prática levem a um processo de desindustrialização. Se as empresas avaliarem que a combinação de IPI mantido e créditos presumidos não é suficiente para compensar os custos amazônicos, a tendência natural seria mover a produção para mais perto dos grandes mercados consumidores. Esse fantasma é real e se baseia em precedentes históricos, como a crise dos anos 1990, quando a abertura comercial levou ao fechamento de dezenas de milhares de postos de trabalho em Manaus.
O argumento final: a Zona Franca como guardiã da “floresta em pé”
Um dos pilares que garantiram a sobrevivência da ZFM na reforma tributária não foi econômico, mas ambiental. Defensores do modelo argumentam que ele é o maior projeto de conservação ambiental do Brasil. A lógica é que, ao criar um polo urbano industrial forte, a ZFM ofereceu uma alternativa econômica viável para a população, reduzindo a pressão sobre a floresta e desincentivando atividades predatórias como garimpo ilegal, grilagem de terras e desmatamento para a agropecuária.
Estudos de instituições como o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) reforçam essa tese, mostrando uma correlação direta entre a atividade industrial em Manaus e a redução das taxas de desmatamento no estado. Esse argumento eleva o debate para além da questão fiscal, enquadrando os incentivos concedidos não como uma renúncia de arrecadação, mas como um pagamento por um serviço ambiental de valor incalculável para o Brasil e para o mundo. A fragilização do polo, portanto, representaria não apenas um risco social, mas também um perigo ambiental iminente.
A reforma tributária não foi o fim da Zona Franca de Manaus, mas o início de uma longa e gerenciada transição. O “paraíso fiscal” deu lugar a um modelo de subsídios mais transparente, porém operacionalmente mais complexo. O futuro do polo industrial e de seu papel na proteção da Amazônia dependerá da capacidade do novo sistema de garantir, na prática, a competitividade que existia no papel.
Você concorda com essa mudança? Acha que isso impacta o mercado? Deixe sua opinião nos comentários, queremos ouvir quem vive isso na prática.