Apesar de a Lei nº 13.811/2019 proibir expressamente o matrimônio de menores de 16 anos, o artigo 1.551 do Código Civil continua em vigor, permitindo exceção em caso de gravidez e revelando uma grave omissão do Congresso Nacional, alerta o jurista Erick Labanca em artigo no portal Migalhas.
O casamento infantil e a omissão legislativa que perpetua uma contradição no Código Civil
O chamado casamento infantil, ainda que combatido por legislações modernas e movimentos sociais, segue previsto como exceção no ordenamento jurídico brasileiro. A brecha, contida no artigo 1.551 do Código Civil, permite o casamento de menores de 16 anos em casos de gravidez, mesmo após a aprovação da Lei nº 13.811/2019, que deveria ter extinguido totalmente essa possibilidade.
A análise é do graduando em Direito Erick Labanca, em artigo publicado no portal Migalhas, onde ele aponta uma grave incoerência entre os dispositivos legais vigentes.
Segundo o autor, essa contradição representa uma omissão inaceitável do Congresso Nacional, que deixou de revogar de forma expressa o artigo em questão, mantendo viva uma norma incompatível com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e com os princípios constitucionais de proteção integral à infância.
A contradição entre os artigos 1.520 e 1.551 do Código Civil
A Lei nº 13.811/2019 alterou o artigo 1.520 do Código Civil, que passou a ter a seguinte redação:
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“Art. 1.520. Não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código.”
Essa mudança, de acordo com Labanca, proíbe expressamente o casamento de menores de 16 anos, estabelecendo uma idade mínima inegociável para a união civil.
Entretanto, o artigo 1.551 do mesmo Código Civil permaneceu inalterado, mantendo a previsão de que “não se anulará, por motivo de idade, o casamento de que resultou gravidez”.
Essa sobreposição cria uma antinomia jurídica, ou seja, um conflito direto entre normas da mesma hierarquia.
Labanca cita a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942), que determina em seu artigo 2º, §1º, que a lei posterior revoga a anterior quando ambas forem incompatíveis. Assim, segundo a teoria geral do Direito (BOBBIO, Teoria Geral do Direito, 2010), a regra mais recente deve prevalecer, o que implicaria uma revogação tácita do artigo 1.551 pelo novo 1.520.
O direito penal e a proteção da infância: o estupro de vulnerável como paradigma
Outro ponto crucial levantado no artigo é o caráter penal das relações com menores de 14 anos.
De acordo com a Súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o consentimento da vítima menor de 14 anos é irrelevante para afastar a configuração do crime de estupro de vulnerável, ainda que haja relacionamento amoroso ou gravidez.
“O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.”
Nesse sentido, o autor destaca decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP), que negou o pedido de casamento entre uma adolescente de 15 anos grávida e seu noivo.
O desembargador Vito Guglielmi, relator da apelação, defendeu que “o melhor interesse da própria adolescente jamais recomendaria o casamento”, reforçando que a idade núbil no direito brasileiro é de 16 anos, conforme o artigo 1.517 do Código Civil.
Um dispositivo ultrapassado que desafia o Estado de Direito
Para Erick Labanca, manter em vigor o artigo 1.551 do Código Civil, à luz da nova redação do artigo 1.520, viola o princípio da dignidade da pessoa humana e a função social da família.
Segundo ele, o dispositivo reflete uma visão anacrônica e incompatível com os avanços sociais e jurídicos conquistados nas últimas décadas, especialmente no que diz respeito aos direitos das crianças e adolescentes.
“O Congresso Nacional esqueceu de revogar o artigo 1.551, permitindo que uma exceção inconstitucional continue existindo no sistema jurídico. Cabe agora ao STF reconhecer essa antinomia e declarar a norma inconstitucional”, conclui o autor.
A informação foi publicada originalmente no portal Migalhas e baseia-se em artigo de opinião de Erick Labanca, intitulado “A Lei nº 13.811/2019 revogou tacitamente o ‘casamento infantil’ do artigo 1.551 do Código Civil?”, também disponível na Revista Jus Navigandi.
E você, acredita que a permanência de brechas que permitem o casamento infantil é fruto de mera falha legislativa ou revela o quanto o Brasil ainda resiste em garantir, de forma plena, os direitos das crianças e adolescentes?