Justiça de Goiás condenou gêmeos idênticos a pagar pensão à mesma criança após DNA apontar os dois como pai, em decisão inédita que expôs limites da ciência.
A cena ocorreu longe das grandes capitais e dos holofotes midiáticos. Em 2019, no interior de Goiás, um caso judicial envolvendo uma criança, dois irmãos gêmeos idênticos e um exame de DNA trouxe à tona um dilema científico e jurídico que parecia vir apenas de ficção: quando a biologia não consegue indicar, com precisão absoluta, quem é o pai, como o sistema de Justiça deve agir? Foi essa a pergunta enfrentada pelo juiz da comarca de Cachoeira Alta, ao julgar uma ação de investigação de paternidade em que o teste genético apontava ambos os homens como possíveis pais da criança — uma raridade estatística, mas possível quando se trata de gêmeos monocigóticos.
Reconhecimento da justiça
O caso ganhou repercussão nacional quando veículos como o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e portais jurídicos noticiaram a sentença, que determinou a multiparentalidade e impôs que os dois irmãos dividissem a responsabilidade pelo pagamento da pensão alimentícia.
A Justiça reconheceu que, mesmo diante da impossibilidade científica de identificar o pai único, a criança não poderia ser prejudicada.
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E, mais do que isso, o magistrado considerou que os gêmeos utilizaram sua condição genética para confundir a mãe e dificultar o reconhecimento do vínculo — criando, assim, uma situação que demandaria uma resposta firme do Poder Judiciário.
DNA, ciência e a dificuldade de distinguir gêmeos idênticos
O exame de DNA, considerado mundialmente o método mais preciso de identificação biológica, não foi capaz de apontar um único pai. Em casos tradicionais, o material genético tem poder de definição superior a 99,9%.
Porém, quando o teste envolve gêmeos monocigóticos — originados do mesmo embrião e, portanto, com carga genética quase idêntica, o padrão de correspondência se torna insuficiente para excluir um dos possíveis genitores. Esse limite científico é conhecido por pesquisadores e já foi tema de estudos internacionais publicados em revistas especializadas em genética e medicina forense.
A solução, em alguns casos raros, poderia envolver técnicas avançadas como sequenciamento de última geração ou análise epigenética, capazes de identificar pequenas mutações adquiridas individualmente ao longo da vida.
Contudo, esses procedimentos ainda não fazem parte da rotina pericial brasileira, têm custos elevados e, em muitos cenários, não garantem precisão absoluta. Assim, para a Justiça goiana, a questão não era apenas científica: tratava-se de assegurar o direito de uma criança ao sustento e à identidade familiar.
O entendimento jurídico e a proteção da criança
A decisão do Tribunal de Justiça de Goiás baseou-se no princípio constitucional do melhor interesse da criança, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente e na própria Constituição Federal de 1988. Na visão do magistrado, quando a ciência não oferece resposta conclusiva, cabe ao Direito suprir a lacuna, garantindo que o menor não seja prejudicado por um embate biológico fora de seu controle.
O juiz também destacou que havia fortes indícios de que os irmãos, sabendo da impossibilidade de distinção genética, buscavam se beneficiar da situação. O uso da genética como estratégia de ocultação da paternidade pesou na decisão.
O resultado foi inédito no Brasil: a multiparentalidade compulsória com divisão da obrigação alimentar, uma raridade nos tribunais do país e do mundo. Assim, cada irmão passou a responder pela pensão — reforçando a mensagem de que o Judiciário não permitirá que brechas científicas sirvam para fraudar direitos fundamentais de crianças e adolescentes.
Multiparentalidade e os novos contornos da família no século XXI
A sentença também dialoga com um fenômeno crescente em diversos países: a ampliação do conceito de família.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça já reconheceram a possibilidade de multiparentalidade em situações de vínculos afetivos e biológicos coexistentes. Contudo, o caso de Goiás difere por não se tratar de laços afetivos múltiplos, mas de uma impossibilidade técnica de exclusão genética.
Essa peculiaridade transformou a decisão em referência acadêmica, discutida em ambientes jurídicos e científicos. Em vez de buscar um único responsável, a Justiça ampliou a proteção, garantindo que a criança tivesse não apenas suporte financeiro, mas também reconhecimento jurídico.
A sentença reforça uma tendência: a família contemporânea não cabe em rótulos estreitos e o Direito, quando necessário, expande suas fronteiras para acompanhar a complexidade humana.
Um caso que provoca debates éticos, científicos e sociais
A repercussão internacional do episódio mostrou que a discussão ultrapassa fronteiras nacionais. Universidades e entidades jurídicas utilizaram o caso como exemplo em debates sobre genética forense, direitos das crianças e teoria da responsabilidade civil.
A decisão também reacende um questionamento frequente no campo ético: até que ponto a tecnologia pode — ou deve — ser usada para resolver conflitos familiares? E quando ela falha, qual o papel do Estado?
O episódio goiano evidencia que a ciência avança, mas ainda encontra limites, especialmente em situações raras como gêmeos idênticos envolvidos em disputas de paternidade.
Ao mesmo tempo, demonstra que o sistema jurídico brasileiro tem sido capaz de interpretar essas lacunas com base em princípios constitucionais sólidos, colocando o bem-estar infantil acima de conflitos adultos e estratégias de ocultação.
No final, o que nasceu como um impasse genético se transformou em marco jurídico e social. Uma criança teve sua proteção assegurada. Dois adultos foram responsabilizados.
E o país assistiu, em 2019, a uma decisão que mostrou, com clareza, que ciência e Justiça caminham lado a lado, mas que, quando o laboratório não alcança uma resposta definitiva, o tribunal não pode se esquivar: cabe a ele garantir que nenhum direito fundamental seja deixado para trás.
A sentença ecoa até hoje, lembrando que, na interseção entre biologia e Direito, o fio condutor deve ser sempre o mesmo: a dignidade e o futuro daqueles que dependem do Estado para existir plenamente enquanto cidadãos.



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