Tribunais decidem: abandono de cônjuge doente em tratamento grave gera indenização por dano moral que pode chegar a R$ 80 mil.
O casamento e a união estável no Brasil não são apenas vínculos afetivos, mas também relações jurídicas regidas por deveres e responsabilidades recíprocas. Entre esses deveres, o apoio mútuo em momentos de dificuldade, sobretudo em situações de doença, é um dos pilares previstos no Código Civil. A quebra dessa obrigação pode gerar consequências severas. Nos últimos anos, decisões judiciais em diversas instâncias passaram a reconhecer que o abandono de um cônjuge durante tratamento de doença grave configura dano moral indenizável. Em casos recentes, tribunais fixaram indenizações que chegaram a R$ 80 mil, demonstrando que a Justiça considera esse tipo de conduta uma violação grave da dignidade humana.
O dever de cuidado e solidariedade no casamento
O artigo 1.566 do Código Civil estabelece claramente os deveres dos cônjuges: fidelidade recíproca, vida em comum no domicílio conjugal, mútua assistência, sustento, guarda e educação dos filhos, e respeito e consideração mútuos.
Entre esses deveres, o da mútua assistência ganha centralidade em casos de doença. Isso significa que, diante de um tratamento grave — como câncer, doenças degenerativas ou enfermidades que exigem acompanhamento constante —, o cônjuge saudável deve apoiar o outro, seja emocionalmente, financeiramente ou logisticamente.
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Quando esse apoio é negado de forma deliberada, com abandono físico e emocional, o ato passa a configurar uma violação contratual e existencial, abrindo espaço para indenização judicial.
Jurisprudência: quando os tribunais reconhecem o abandono como ato ilícito
Em diferentes tribunais estaduais, há decisões que consolidam esse entendimento:
- O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) já condenou um ex-marido a pagar R$ 50 mil de indenização à ex-esposa que foi abandonada logo após ser diagnosticada com câncer. A corte entendeu que a conduta configurou abandono moral e psicológico, agravando o sofrimento da mulher.
- Em outro caso, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) manteve sentença que obrigou um homem a indenizar a ex-companheira com R$ 80 mil, após ela comprovar que foi deixada sem apoio durante tratamento de doença degenerativa.
- Há ainda precedentes no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que reforçam a ideia de que a violação dos deveres conjugais pode gerar indenização por dano moral, especialmente em situações de vulnerabilidade extrema.
Esses julgados consolidam um ponto essencial: o abandono em situação de doença não é visto apenas como falha afetiva, mas como ilícito civil com repercussões patrimoniais.
Dano moral em relações familiares: uma evolução no Direito brasileiro
Historicamente, a Justiça brasileira era resistente a condenar cônjuges por abandono afetivo. A lógica era de que sentimentos não poderiam ser objeto de reparação patrimonial.
Contudo, a partir dos anos 2000, com a evolução da teoria da responsabilidade civil, os tribunais passaram a considerar que a quebra de deveres conjugais — quando causa sofrimento mensurável e comprovado — pode sim gerar obrigação de indenizar.
O avanço mais conhecido foi no abandono afetivo entre pais e filhos, com decisões do STJ fixando indenizações em casos de ausência completa de cuidado. Esse raciocínio agora se estende às relações conjugais, especialmente quando a quebra do dever acontece em situações de fragilidade extrema, como uma doença grave.
Quando o abandono gera direito à indenização
Não é todo fim de relacionamento que gera indenização. A Justiça deixa claro que o simples término de um casamento ou união estável não configura ilícito.
A indenização só é cabível quando há:
- Comprovação de doença grave do cônjuge abandonado;
- Comprovação de abandono material e moral, com ausência de apoio financeiro, emocional ou logístico;
- Nexo de causalidade entre o abandono e o agravamento do sofrimento;
- Comportamento doloso ou negligente do cônjuge que abandona.
Quando esses elementos estão presentes, os tribunais têm entendido que o ato gera não apenas dor emocional, mas também risco de agravamento da condição clínica — o que caracteriza o dano moral indenizável.
Valores fixados pela Justiça: até R$ 80 mil
Os valores das indenizações variam de acordo com o caso, mas os tribunais têm fixado montantes expressivos. Em decisões recentes:
- R$ 30 mil a R$ 50 mil em casos de abandono durante doenças com possibilidade de recuperação;
- R$ 80 mil em situações mais graves, especialmente quando o abandono coincidiu com diagnósticos terminais ou degenerativos.
Os magistrados justificam que, nesses contextos, a indenização não se trata de “preço para o amor”, mas de uma compensação pelo sofrimento acrescido e pelo descumprimento de deveres conjugais legais.
Impactos sociais da decisão
Esse novo entendimento jurídico tem repercussões além do caso concreto. Ele reforça uma mensagem clara: relações familiares não são apenas vínculos afetivos, mas também contratos sociais com deveres jurídicos reais.
O reconhecimento do dano moral nesses casos também serve de alerta para situações de abandono silencioso, nas quais pessoas doentes são deixadas à própria sorte em hospitais ou casas de repouso. A decisão judicial abre caminho para maior responsabilização.
Casamento, doença e responsabilidade jurídica
A grande mensagem das recentes decisões é simples: casamento não é descartável. O abandono de um cônjuge em meio a tratamento de doença grave não é apenas um gesto de insensibilidade, mas um ato ilícito com consequências jurídicas sérias.
A jurisprudência deixa claro que a dignidade humana e a solidariedade familiar se sobrepõem ao direito de simplesmente “virar as costas” em momentos de crise.
Para a sociedade, trata-se de um marco na proteção da família e dos mais vulneráveis, reforçando que a Justiça brasileira não tolera estratégias de fuga de responsabilidade em situações extremas.