Decisão do STJ mostrou como um contrato de comodato, aliado a notificações simples, foi suficiente para impedir a usucapião de um imóvel ocupado há décadas por familiares, tornando-se referência para proprietários em situações semelhantes.
A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça manteve a improcedência de uma ação de usucapião proposta por herdeiros que ocupavam um imóvel havia quase quatro décadas.
No Recurso Especial 1.552.547/MS, os ministros entenderam que a permanência dos ocupantes decorria de comodato, inicialmente verbal e depois formalizado por escrito, e que notificações extrajudiciais do proprietário evidenciavam oposição contínua. Sem o elemento subjetivo do animus domini, a pretensão aquisitiva foi afastada.
O que é comodato e como afasta a usucapião
O comodato é o empréstimo gratuito de coisa não fungível, previsto nos arts. 579 a 585 do Código Civil.
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Nessa relação, o comodatário detém posse direta e reconhece que a posse indireta permanece com o comodante, que pode exigir a devolução.
Essa origem precária torna a posse incompatível com a aquisição por usucapião, porque não há intenção de agir como dono.
Na linha da jurisprudência do STJ, quem ocupa um bem nessa condição sabe quem é o proprietário e, por isso, não preenche o requisito subjetivo imprescindível para a prescrição aquisitiva.
Ainda que o tempo de permanência seja longo, a natureza derivada da posse não se transmuta automaticamente em domínio.
O vínculo contratual, somado à manifestação periódica de oposição do titular, impede o requisito de posse mansa, pacífica e com ânimo de dono.
Caso emblemático julgado pelo STJ
A controvérsia teve início nos anos 1970, quando o dono cedeu o imóvel a empregados sob comodato verbal.
A situação se manteve até 2008, quando, após o falecimento dos comodatários originais, os herdeiros assinaram novo comodato escrito com prazo de dois anos.
Findo o período e sem a devolução voluntária, a família ajuizou usucapião extraordinária alegando cerca de 38 anos de posse continuada.
A sentença de primeiro grau rejeitou o pedido ao reconhecer a precariedade da ocupação.
O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul confirmou a decisão, destacando que o proprietário visitava o imóvel e havia notificado os ocupantes, reforçando a oposição.
Ao analisar o caso, o STJ desproveu o recurso especial dos herdeiros.
Para a Quarta Turma, “a posse originariamente adquirida em caráter precário assim permaneceu durante todo o seu exercício”, e as notificações extrajudiciais evidenciaram a resistência do dono, afastando a exigência de posse “mansa e pacífica”.
Jurisprudência consolidada sobre comodato e usucapião
A tese não ficou isolada.
Em julgados posteriores, o STJ reiterou que a existência e a renovação de comodato mantêm a posse em caráter precário, inviabilizando a usucapião.
Em 1º de dezembro de 2020, no REsp 1.448.587/DF, a Quarta Turma reafirmou que sucessivas prorrogações do contrato preservam a natureza da posse e não autorizam sua transmudação para domínio.
Em 21 de agosto de 2023, no AgInt no AREsp 1.657.468/SP, a Corte reforçou que despesas de conservação do bem recaem sobre o comodatário e que reconhecê-lo como proprietário em razão de gastos inerentes ao uso seria premiar a inadimplência contratual.
Embora o Tema 1.059 dos repetitivos trate de hipóteses envolvendo herdeiros e posse exclusiva sobre quota ideal, esses enunciados não relativizam a força do comodato como causa impeditiva do animus domini quando o contrato é válido e a oposição do proprietário é demonstrada.
Como proteger o imóvel com documentação adequada
A prevenção começa na forma.
Um comodato claro identifica comodante e comodatário, descreve o imóvel com precisão — matrícula, endereço e demais elementos de individualização —, define prazo ou condição de restituição e estipula responsabilidades sobre taxas, tributos e conservação.
Reconhecimento de firma não é requisito de validade, mas ajuda a demonstrar autenticidade e datação.
A formalização, por si só, costuma ser acompanhada de comunicação ativa do proprietário.
Cartas registradas ou notificações extrajudiciais periódicas reafirmam a tolerância e, se for o caso, convidam à desocupação ou à renovação expressa.
Esse registro documental não apenas comprova a continuidade do comodato como também evidencia a oposição, requisito suficiente para afastar a ideia de posse mansa e pacífica ao longo do tempo.
Há proprietários que optam por dar publicidade adicional à situação jurídica.
O contrato pode ser levado a registro em Títulos e Documentos para conservação e prova perante terceiros, e existem práticas cartorárias que ampliam a visibilidade da cessão.
Em qualquer cenário, quanto mais consistente e atualizada estiver a trilha documental, menor o espaço para controvérsia sobre a natureza da posse.
Perguntas comuns sobre o contrato de comodato
Uma dúvida recorrente diz respeito ao pagamento de IPTU e de despesas ordinárias.
Em regra, o desembolso pelo ocupante não implica reconhecimento de domínio; trata-se de obrigação de quem utiliza o bem e se beneficia dele, especialmente quando o contrato prevê tal responsabilidade.
Também aparece a questão do aluguel: enquanto o comodato vigora, a gratuidade é elemento essencial do negócio.
A cobrança de contraprestação afasta a natureza do empréstimo e exige a rescisão do contrato e a constituição de outra relação jurídica, como locação.
Outro ponto sensível é o término do prazo sem renovação.
A partir do vencimento, a permanência torna-se irregular, porém ainda marcada pela precariedade originária.
Nesse quadro, a postura ativa do proprietário — com registros de oposição e medidas compatíveis — continua sendo suficiente para desconstituir a alegação de posse com ânimo de dono.
Por que o tema voltou ao debate jurídico
A discussão voltou ao centro do noticiário jurídico por fatores combinados.
Houve expansão dos pedidos de usucapião extrajudicial após a Lei 14.382/2022, que redesenhou procedimentos registrais e estimulou vias administrativas.
Além disso, muitas famílias conviveram com imóveis ociosos durante a pandemia, e a migração para o home office levou parentes a ocuparem casas de forma amistosa e informal.
Em paralelo, inventários extrajudiciais cresceram e revelaram situações em que um herdeiro permaneceu sozinho no bem sem acordo escrito, cenário que costuma alimentar litígios sobre a qualidade da posse.
Nesse contexto, decisões como a do REsp 1.552.547/MS funcionam como guia prático para prevenir disputas.
A mensagem central é objetiva: quando o ocupante está em comodato e o titular manifesta oposição de forma documentada, não se configura animus domini nem posse qualificada para usucapião.
Caminhos para proteger herdeiros e proprietários
A experiência dos tribunais indica um roteiro simples.
Sempre que houver tolerância na ocupação — inclusive entre pais e filhos —, a formalização por comodato reduz incertezas.
A cada mudança relevante, como morte de um ocupante ou troca de moradores, a atualização do instrumento preserva a continuidade do vínculo e registra novos responsáveis.
Em paralelo, comunicações periódicas, por escrito, mantêm viva a oposição e demonstram que a permanência não é indiferente ao proprietário.
Em inventários, a abertura e o andamento regular da partilha ajudam a evidenciar que o imóvel está submetido a um regime de administração comum, o que contraria a tese de posse exclusiva com ânimo de dono por um único herdeiro.
O acompanhamento das datas contratuais e a disciplina de arquivo das mensagens, recibos de notificação e eventuais respostas fecham o círculo de proteção.
No fim, a lógica é pragmática: a usucapião premia quem age como proprietário sem contestação.
O comodato, quando válido e bem documentado, materializa a contestação e preserva o direito do titular contra a perda do bem.