Cresce nos EUA a adoção de jornadas de trabalho exaustivas em startups de inteligência artificial, modelo já considerado ilegal na China e que reacende o debate sobre limites no ambiente corporativo de tecnologia.
O avanço acelerado da inteligência artificial nos Estados Unidos tem impulsionado transformações profundas no ambiente de trabalho, especialmente em startups do setor.
O que chama atenção é a adoção crescente da chamada escala 996 – regime de expediente que, apesar de proibido na China desde 2021, começa a se disseminar de forma velada em empresas americanas voltadas para IA.
Esse modelo, originalmente amplamente utilizado por gigantes chinesas da tecnologia, volta ao debate internacional justamente por representar jornadas consideradas excessivas e polêmicas.
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O que é a escala 996 no mercado de tecnologia
No formato conhecido como escala 996, os funcionários trabalham das 9 horas da manhã às 9 horas da noite, seis dias por semana, totalizando 72 horas de dedicação semanal à empresa.
A prática, que ganhou notoriedade na China em corporações como Alibaba e Tencent, chegou a ser defendida publicamente por líderes do setor de tecnologia sob o argumento de que jornadas extensas seriam necessárias para o crescimento econômico e inovação.
Jack Ma, fundador do Alibaba, chegou a afirmar que trabalhar sob a escala 996 era “uma bênção”, posicionamento que gerou controvérsias e críticas dentro e fora do país.
Adoção velada da escala 996 nos Estados Unidos
Segundo reportagem publicada pela revista Wired, startups localizadas principalmente na região do Vale do Silício e na Baía de San Francisco têm adotado variações da escala 996, muitas vezes sem divulgar formalmente o nome do regime para evitar repercussão negativa ou eventual fiscalização.
Em descrições de vagas, observa-se o aumento explícito da carga horária semanal, em especial para cargos considerados estratégicos para o desenvolvimento de produtos e crescimento das companhias.
“Esse modelo não é mencionado diretamente, mas a expectativa de dedicação extrema fica clara”, revelou um funcionário ouvido pela publicação, que pediu anonimato.
Consequências e regulamentação: experiência chinesa
Na China, a escalada de denúncias sobre exaustão, adoecimento e até mortes atribuídas ao excesso de trabalho sob a escala 996 levou o governo a proibir formalmente a prática em agosto de 2021.
Além de proibir jornadas que ultrapassem o limite legal, autoridades chinesas intensificaram a fiscalização e as punições a empresas que desrespeitam as normas trabalhistas.
Segundo o Supremo Tribunal Popular da China, “o trabalho excessivo fere os direitos e a dignidade dos trabalhadores”, e a perpetuação desse modelo foi considerada ilegal.
Legislação trabalhista nos EUA e flexibilidade em startups de IA
Nos Estados Unidos, entretanto, não existe uma legislação federal que limite de forma clara as horas de trabalho semanais em empresas privadas, exceto para categorias protegidas por normas específicas.
O padrão da chamada escala 996 passa a ser adotado principalmente em empresas de tecnologia e inteligência artificial, que enfrentam alta competitividade e pressão para inovar rapidamente.
De acordo com especialistas em relações do trabalho, a ausência de regulamentação facilita a imposição de jornadas ampliadas, mesmo quando há expectativa de pagamento de horas extras.
“Na prática, nem sempre esse adicional é pago de forma adequada”, aponta a Wired.
Cultura da “hustle culture” e saúde mental no setor de inteligência artificial
A cultura do excesso de trabalho, também conhecida como “hustle culture”, se intensifica no ambiente de IA, onde a velocidade do desenvolvimento e a busca por diferenciais competitivos são constantes.
Para profissionais considerados “vitais” dentro das startups, a exigência de longas jornadas é muitas vezes vista como parte do compromisso necessário para a sobrevivência e expansão dos negócios.
Em muitos casos, benefícios financeiros e a promessa de participação societária (stock options) são oferecidos como incentivos, porém relatos de desgaste físico e mental são cada vez mais frequentes.
Riscos à saúde e movimentos de proteção ao trabalhador
Nos últimos anos, movimentos em defesa da saúde mental e do equilíbrio entre vida pessoal e profissional ganharam força globalmente.
Organizações internacionais, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), alertam para os riscos do trabalho excessivo, incluindo aumento dos índices de burnout, ansiedade e doenças ocupacionais.
Estudos recentes apontam que jornadas superiores a 55 horas semanais elevam significativamente o risco de problemas cardiovasculares e depressão.
Pressão do mercado de IA e impacto nas condições de trabalho
A adoção da escala 996 nos Estados Unidos ocorre num contexto de crescimento explosivo da inteligência artificial e grande aporte de investimentos, o que eleva a pressão por entregas rápidas e inovação contínua.
Dados do setor de tecnologia mostram que startups de IA receberam volumes recordes de investimento desde 2023, tornando o segmento ainda mais competitivo.
Mesmo com o histórico negativo desse regime na China, empresas americanas optam por flexibilizar regras internas para manter produtividade e atrair profissionais dispostos a enfrentar jornadas intensas.
Futuro do trabalho em tecnologia e desafios jurídicos
Especialistas apontam que a consolidação desse modelo pode abrir precedentes para discussões jurídicas e sociais sobre o futuro do trabalho em tecnologia.
Sindicatos, que historicamente possuem baixa representatividade em empresas de tecnologia nos EUA, passam a questionar práticas consideradas abusivas, especialmente diante de relatos de jornadas que excedem 60 ou 70 horas semanais sem compensação adequada.
Inovação, limites éticos e o debate sobre a escala 996
O debate sobre a escala 996 evidencia a necessidade de um equilíbrio entre inovação e respeito aos direitos trabalhistas.
A experiência chinesa demonstra que a busca por resultados rápidos pode trazer consequências graves para a saúde e o bem-estar dos profissionais.
Ao mesmo tempo, o exemplo das startups americanas mostra que a pressão do mercado pode criar novos paradigmas para o trabalho em tecnologia – inclusive com o retorno de práticas já condenadas em outros países.
Para você, até que ponto a busca por inovação justifica jornadas de trabalho tão extensas e quais os limites éticos para o avanço da inteligência artificial? O futuro do setor pode depender justamente das respostas que sociedade, empresas e governos darão a esse desafio.