Mais de 60 mil crianças e adolescentes aparecem como sócios de empresas no Brasil, segundo o Fantástico. A prática é legal, mas tem deixado jovens com dívidas milionárias e o nome sujo por causa de brechas na legislação.
A legislação brasileira permite que menores de idade figurem no quadro societário de empresas.
É aí que começa o problema.
Embora a lei proíba que crianças administrem o negócio e exija a assinatura de pais ou responsáveis nos atos, o modelo abre espaço para que CPFs infantis sejam usados por familiares para abrir empresas que depois acumulam dívidas trabalhistas e tributárias.
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Reportagem exibida pelo Fantástico, da TV Globo, revelou que mais de 60 mil menores constam como sócios de companhias no país, número que evidencia a dimensão do fenômeno e reacende o debate sobre proteção jurídica.
O que a lei permite e o que proíbe
Pelo Código Civil, menores podem ser sócios, desde que representados (se têm menos de 16 anos) ou assistidos (entre 16 e 18).
A gerência do negócio, porém, não cabe à criança; ela deve ser exercida por um adulto.
Jovens emancipados a partir dos 16 anos podem, em tese, assumir funções administrativas, mas a regra geral é clara: sócio menor não administra.
Na prática, a Junta Comercial e a Receita Federal registram esses vínculos por meio do quadro societário, com a indicação da qualificação de “sócio menor (assistido/representado)”.
O procedimento é legal e usual em estruturas patrimoniais familiares, doações de quotas e planejamentos sucessórios.
O problema emerge quando essa formalidade é instrumentalizada para fraudes domésticas, com a inserção do CPF de uma criança em empresas que não têm atividade real ou que acabam fechando sem quitar obrigações.
Como as dívidas chegam ao CPF de crianças
Quando a empresa deixa de pagar tributos ou salários e não há bens suficientes no CNPJ, a Justiça pode aplicar a desconsideração da personalidade jurídica, alcançando o patrimônio dos sócios.
Em execuções trabalhistas, esse mecanismo é usado com frequência para evitar a impunidade de empresas “de fachada”.
O resultado, em casos de abuso, é direto: o CPF do menor — que não contratou, não geriu e não recebeu — aparece como alvo de bloqueios e cobranças, porque formalmente é sócio.
Foi o que viveu Renata Furst Galvão, cujo caso foi revelado pelo Fantástico.
Na infância, desconhecidos iam à sua casa chamando por “Renata” e ela se escondia, sem entender a razão.
“Aqueles homens que iam na minha casa eram, na verdade, oficial de justiça, procurando pelos meus bens”, contou.
Segundo a reportagem, um familiar convenceu a mãe a autorizar o uso do seu nome e do CPF para incluí-la como sócia de duas empresas — uma pizzaria e uma cerâmica.
As companhias funcionaram por um período curto e quebraram, deixando dívidas com o governo e com ex-funcionários.
Sem encontrar bens da empresa, a Justiça direcionou as execuções aos sócios.
Ainda criança, Renata não tinha patrimônio.
“Eu herdei apenas uma coisa dessas empresas: dívida e nome sujo”, relatou.
Quando o nome sujo começa na infância
Outro caso abordado pela TV Globo foi o de André Santos.
Aos 15 anos, após a morte da mãe — sócia majoritária de uma empresa de navegação — o pai o incluiu na sociedade para manter o controle do negócio.
Sem experiência de gestão, a empresa entrou em colapso.
A partir dos 17, oficiais de justiça passaram a bater à porta da família por débitos trabalhistas e fiscais.
Quase três décadas depois, as consequências ainda pesam: “Eu não posso ter absolutamente nada no meu nome, eu não posso ter nenhum tipo de bem, eu não posso ter nenhum tipo de dinheiro na conta”, disse em entrevista ao programa.
Renata também enfrentou a maratona de restrições na vida adulta.
Ao completar 18 anos, foi surpreendida com o bloqueio judicial da própria conta bancária para pagamento de dívida empresarial.
Mudou-se para a África do Sul e, depois, para os Estados Unidos, especializando-se em prevenção a fraudes no setor financeiro.
“Eu não sou uma pessoa que deve dinheiro”, afirmou ao Fantástico, ao defender que o uso do documento de uma criança nessas condições configura roubo de identidade.
Após anos de disputas, conseguiu limpar o nome no Brasil aos 28.
Brecha legal entre o Código Civil e o ECA
Especialistas apontam um descompasso entre o Código Civil, que permite a participação societária do menor com representação, e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que materializa o princípio constitucional da prioridade absoluta.
De acordo com a apuração do Fantástico, juristas afirmam que a legislação civil mantém traços de uma visão ultrapassada, em que a criança é tratada como extensão dos pais.
Para a professora Vivianne Ferreira, da FGV, há “disparidade de tratamento”: o sistema civil admite o menor como parte do quadro societário, mas não estabelece salvaguardas suficientes para evitar que a inclusão sirva de atalho a fraudes.
Na visão dela, reformas em discussão têm sido tímidas nesse ponto e deveriam prever responsabilização direta de pais ou responsáveis nos casos de má-fé, evitando que jovens descubram, ao atingir a maioridade, um passivo que nunca criaram.
Mudanças em debate no Congresso
No Congresso, a modernização do Código Civil voltou à pauta.
Em setembro, o Senado instalou uma comissão temporária para analisar a proposta de atualização do texto de 2002.
O debate cobre centenas de dispositivos, incluindo temas de família e proteção de vulneráveis.
Enquanto não há alteração expressa sobre participação societária de menores, juristas sugerem calibragem em três frentes:
- Exigência de responsável solidário identificado quando o sócio for criança;
- Vedação explícita à indicação de menor em sociedades operacionais sem justificativa patrimonial, educacional ou sucessória;
- Rito de verificação reforçado, com análise documental e comunicação ao Conselho Tutelar em casos atípicos.
O programa da TV Globo também apontou que advogados têm defendido ajustes no processo de execução, para que a desconsideração da personalidade jurídica leve em conta a idade e a capacidade civil do sócio.
Assim, bloqueios automáticos deixariam de atingir CPFs infantis, priorizando a responsabilização de quem realmente geriu a empresa.
Pais e responsáveis podem ser responsabilizados
A responsabilização de pais ou responsáveis que, dolosamente, inscrevem crianças como sócias de empresas problemáticas é vista como caminho de correção.
Nesse cenário, a assinatura dos representantes, que hoje serve como autorização formal, também funcionaria como âncora de responsabilidade patrimonial em caso de inadimplência ou fraude, resguardando o CPF do menor.
É o tipo de mudança que especialistas defendem para fechar a brecha sem inviabilizar estruturas legítimas de planejamento familiar.
Enquanto ajustes não vêm, advogados recomendam prudência.
A inclusão de crianças em sociedades deve ter finalidade clara e comprovável, com documentação de origem do capital, integralização real de quotas e administração por adulto capaz.
Em litígios já instaurados, defensores têm recorrido a provas de ausência de gestão, de consentimento e de benefício econômico por parte do menor para afastar bloqueios, além de requerer que a execução alcance primeiro os administradores efetivos.
Vítimas pedem mudanças na lei
Renata resume o impacto pessoal: “O CPF de uma criança sendo usado é roubo de identidade, porque essa criança não pode autorizar”.
No seu caso, a colocação como sócia ocorreu sem compreensão e sem qualquer benefício.
Anos depois, a consequência foi o travamento da vida civil, com restrições para abrir conta, contratar serviços e realizar atos cotidianos.
Situação semelhante é narrada por André, que segue impedido de acumular patrimônio.
Os relatos, revelados pelo Fantástico, ilustram como uma formalidade societária, pensada para fins legítimos, acaba, em determinados contextos, expondo menores a um risco que o sistema deveria neutralizar.
Se a inclusão de menores no quadro societário é legal e, em muitos arranjos familiares, inofensiva, como construir salvaguardas para que a regra não siga servindo de atalho à fraude doméstica e ao endividamento de quem nem sequer podia consentir?