Mesmo com PIX, Caixa Tem e bancos digitais, quase metade da população ainda depende das casas lotéricas — um fenômeno que mistura cultura, desconfiança e exclusividade estatal
No Brasil, existem mais de 13 mil casas lotéricas espalhadas por todos os estados. São lugares facilmente reconhecíveis: filas extensas, guichês apertados e aquele microfone abafado atrás de vidros blindados de cinco centímetros. Lá dentro, o som metálico das apostas e dos pagamentos se mistura a cartazes de Lotofácil, Quina e Dupla Sena.
Mesmo em um mundo dominado por aplicativos e transferências instantâneas, milhares de brasileiros ainda preferem resolver suas pendências ali. Segundo levantamento do Buscapé, 48% da população ainda utiliza lotéricas — e, entre eles, 54% vão apenas para pagar contas. A segunda motivação é apostar: 32% fazem “a fezinha” regularmente, enquanto 14% recorrem ao local para saques e consultas bancárias.
Mas afinal, por que esses estabelecimentos sobrevivem em pleno 2025, quando quase tudo cabe na tela de um celular?
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Das apostas elitistas ao monopólio da Caixa
As casas lotéricas não nasceram como balcões populares de pagamento. Sua origem remonta ao Decreto-Lei nº 204 de 1967, que centralizou o controle das loterias na União e deu à Caixa Econômica Federal o papel de operadora exclusiva do sistema. Antes disso, cada estado e município organizava suas próprias loterias de forma descentralizada.
A informação foi divulgada por Elementar, em um estudo que detalha como o decreto transformou o jogo em um serviço público e, ao mesmo tempo, em uma fonte segura de arrecadação para o governo. Com o monopólio, a Caixa passou a administrar toda a rede — o que, décadas depois, se revelaria uma decisão estratégica.
Nos anos 1990 e 2000, as lotéricas evoluíram de simples pontos de apostas para correspondentes bancários oficiais, permitindo saques, depósitos, consultas e pagamento de benefícios como Bolsa Família, INSS e PIS/PASEP. Em regiões periféricas ou cidades pequenas, elas se tornaram a única ponte entre o cidadão e o sistema financeiro nacional.
Atualmente, as lotéricas geram mais de 100 mil empregos diretos e movimentam cerca de R$ 18 bilhões por ano apenas com apostas, segundo dados do SEBRAE. Parte dessa arrecadação é revertida para educação, saúde e segurança pública, consolidando seu papel social e econômico.
Cultura, desconfiança e o futuro das filas
Mesmo com o avanço dos bancos digitais, a desconfiança tecnológica ainda é alta. Milhões de brasileiros não têm internet estável, usam celulares básicos ou simplesmente não confiam em fazer transações financeiras online. Para esse público, o contato humano com o atendente ainda representa segurança — mesmo que seja através de um microfone abafado e um vidro espesso.
O especialista Francisco Donato resume: “As lotéricas construíram uma relação de fidelidade com os brasileiros, e isso explica sua longevidade”. Além disso, elas continuam sendo instituições padronizadas e supervisionadas pela Caixa, o que reforça a sensação de confiança.
Mas o que antes era exclusividade do Estado agora começa a ser desafiado. Desde a Lei nº 13.756/2018, o setor de apostas online foi legalizado e, a partir de 2025, passa a ser regulamentado pelo Ministério da Fazenda. Isso abre o mercado para empresas privadas nacionais e estrangeiras, incluindo gigantes internacionais como MGM Grand e Caesars Palace.
Segundo Magno José, presidente do Instituto Brasileiro Jogo Legal, o Brasil é “a joia da coroa do mercado de apostas mundial” — um país com paixão por futebol, desigualdade econômica e milhões de potenciais apostadores. Estima-se que já existam mais de 2 mil sites de apostas operando no país, pressionando o monopólio histórico da Caixa.
Esse movimento, embora traga inovação e concorrência, também levanta alertas sobre endividamento, vício e falta de controle publicitário, especialmente entre jovens e pessoas de baixa renda.
Fila, papel e confiança: o retrato do Brasil real
Mesmo com todos esses avanços, as casas lotéricas continuam sendo o retrato fiel do Brasil fora do 5G. Elas existem porque o país ainda é profundamente desigual em acesso digital. Em muitas localidades, o sinal de internet é instável, e o celular mais moderno da cidade é o do dono da lan house.
Enquanto a elite faz PIX com reconhecimento facial, milhões seguem entregando o boleto no guichê e esperando o carimbo azul da Caixa. É o país do papel e do digital convivendo lado a lado — um paradoxo que, longe de ser atraso, revela a complexa realidade social e tecnológica do Brasil de 2025.
O futuro pode até ser 100% digital. Mas o presente ainda tem filas, papeizinhos e vidros blindados. E talvez isso diga mais sobre nós do que sobre as lotéricas.