Vindos da Bolívia, os navegadores percorrem mais de 3.500 km rumo a Macapá em homenagem aos 200 anos da independência boliviana. A balsa, feita de junco andino, se deteriora a cada dia nas águas turbulentas da Amazônia
Desde o início de julho, três jovens navegadores franceses enfrentam uma travessia incomum e arriscada pelos rios da Amazônia. A bordo de uma balsa feita de totora, um tipo de junco andino usado há séculos no Lago Titicaca, eles navegam há três meses, vindos da Bolívia, com destino à cidade de Macapá, no Amapá. A expedição celebra os 200 anos da independência da Bolívia e está prestes a ser concluída.
A reta final da jornada
O grupo, que começou com quatro integrantes, está agora a menos de 100 quilômetros do destino final. A intenção é chegar à foz do Rio Amazonas, onde as águas doces se misturam ao Atlântico.
No entanto, o desafio se tornou cada vez mais perigoso porque a embarcação, construída com feixes amarrados de totora, está se deteriorando rapidamente.
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Com o passar dos dias, a balsa vem encharcando, afundando cada vez mais. Nos grandes rios amazônicos, as ondas altas se chocam contra o frágil casco de palha, inundando-o com frequência.
O líder da expedição, o francês Fabien Gallier, explicou que a situação está crítica.
“Cada onda que vem passa por cima da balsa e inunda tudo. Estamos seguindo em frente, mas mais devagar, porque o barco ficou pesado. Além disso, estamos navegando só a remo, já que os ventos são contrários à direção que queremos ir”, relatou.
Uma travessia lenta e perigosa
No início da viagem, os feixes de totora mantinham a embarcação cerca de 40 centímetros acima da superfície.
Agora, restam apenas 20 centímetros, o que faz com que qualquer marola inunde o barco. “Passamos o tempo todo molhados”, contou Fabien, que divide a aventura com Erwan Rolland e Benjamin Vaysse.
O documentarista Télio Nouraud deixou o grupo para reduzir o peso da embarcação, que hoje pesa mais que o dobro do início da expedição.
Apesar do desconforto, o trio segue entusiasmado. Eles enfrentam turnos de até dez horas por dia remando, sob sol forte e chuva constante.
A preocupação com a integridade da balsa é constante, mas o grupo confia que ela resistirá até o fim.
“Mesmo que desmanche, a balsa não afunda, porque a totora sempre boia”, afirmou Fabien, lembrando que os construtores da embarcação já haviam alertado que o material tem vida útil curta.
Uma embarcação viva
Os navegadores passaram dois meses no Lago Titicaca construindo a balsa junto a uma família tradicional de artesãos da região, conhecidos por preservar essa técnica ancestral.
Eles sabiam que o barco não resistiria por muito tempo, especialmente nas águas amazônicas, onde a temperatura e as correntes são mais severas do que nas montanhas bolivianas.
Em média, uma balsa feita de totora dura até quatro meses no Lago Titicaca. Nas águas quentes da Amazônia, o processo de decomposição é mais rápido.
Mesmo assim, os franceses seguiram firmes, conscientes de que a deterioração fazia parte da experiência.
“Nós sabíamos que isso ia acontecer. Os rios da Amazônia iriam encharcar e acelerar a decomposição. Mas faz parte da aventura. Navegamos com um barco orgânico e vivo”, disse Fabien.
Segundo ele, a balsa se transformou em um pequeno ecossistema flutuante. “Todos os dias, brotam cogumelos entre os feixes e usamos eles para comer.
Também temos formigas e cupins a bordo. É um verdadeiro ecossistema”, brincou o francês, que já havia percorrido o Brasil de bicicleta, do Oiapoque ao Chuí.
Um feito histórico, se resistirem
Atualmente, a embarcação de seis metros de comprimento por 2,5 de largura está a cerca de 100 quilômetros de Macapá.
Se conseguir chegar, o grupo será o primeiro a navegar com um barco de junco desde os Andes até o Oceano Atlântico, percorrendo mais de 3.500 quilômetros.
A previsão é que completem a jornada em dois ou três dias, “se a balsa aguentar”, como dizem os próprios navegadores.
Herança de expedições lendárias com balsas deste tipo
A ousadia dos franceses remete a aventuras históricas que também usaram balsas e jangadas.
A mais célebre delas foi a do norueguês Thor Heyerdahl, que, em 1947, navegou do Peru à Polinésia Francesa com uma embarcação feita de troncos e totora.
O objetivo era comprovar sua tese de que os povos da Polinésia teriam vindo da América do Sul.
Curiosamente, a balsa de Heyerdahl foi construída pelos ancestrais da mesma família que ajudou os franceses na atual expedição.
Além dessa, outras viagens experimentais também usaram embarcações primitivas para reconstituir travessias históricas ou realizar estudos científicos. Para Fabien, essas balsas são únicas porque “permitem um vínculo estreito entre o homem e a natureza”.
A balsa do sexo e o lado social das expedições
Entre as aventuras mais controversas realizadas em balsas está a do antropólogo mexicano Santiago Genovés, em 1973.
Ele colocou cinco homens e seis mulheres desconhecidos dentro de uma balsa e cruzou o Atlântico, das Ilhas Canárias ao México, para estudar o comportamento humano sob tensão.
Durante a viagem, o pesquisador incentivou relacionamentos e situações de conflito entre os tripulantes, transformando a experiência em um experimento social polêmico, apelidado pela imprensa de “Balsa do Sexo”.
Apesar das críticas, o estudo inspirou formatos modernos de confinamento televisivo, como os reality shows, inclusive o Big Brother, por explorar o convívio humano em espaços reduzidos e sob pressão constante.
Um tributo à resistência e à natureza
A expedição dos franceses, portanto, segue uma longa tradição de navegações experimentais. Mais do que uma aventura, o projeto simboliza a união entre coragem, simplicidade e respeito pela natureza.
Com a balsa cada vez mais encharcada, os navegadores avançam remando pelas águas do Amazonas, sem saber se chegarão a Macapá.
Mas, como destaca Fabien Gallier, “mesmo se não conseguirmos chegar até o oceano, já teremos vivido algo extraordinário”.
Para eles, o que importa é o caminho — e a história que a totora, lentamente se desfazendo na correnteza, continuará a contar por muito tempo.
Com informações de UOL.