Gasoduto TurkStream conecta Rússia à Europa sob o Mar Negro, com 930 km e 31 bilhões de m³ por ano — e se tornou peça-chave na geopolítica energética.
Na disputa silenciosa pelo controle energético do mundo, poucas obras foram tão estratégicas, discretas e tecnicamente desafiadoras quanto o TurkStream. Este gasoduto submarino de 930 quilômetros, estendido sob o Mar Negro, liga Anapa, na Rússia, à cidade costeira de Kıyıköy, na Turquia. A partir desse ponto, ele conecta-se a outras redes que abastecem milhões de residências e indústrias no sudeste da Europa — incluindo Bulgária, Sérvia e Hungria.
Mais do que uma façanha de engenharia, o TurkStream representa um movimento geopolítico calculado pela Rússia para manter sua influência energética mesmo diante de sanções, instabilidade política e pressões internacionais. Em tempos de tensão com a Ucrânia, o gasoduto tornou-se uma rota alternativa que contorna o território ucraniano, reforçando a presença de Moscou no coração do continente europeu.
A construção silenciosa de uma das rotas mais importantes da Europa – gasoduto TurkStream
O projeto do TurkStream foi anunciado oficialmente em 2014, em meio à crescente tensão entre Rússia e Ucrânia após a anexação da Crimeia. À época, a Rússia já era a maior fornecedora de gás natural da Europa, e boa parte desse fluxo passava por gasodutos instalados no território ucraniano — uma vulnerabilidade tanto logística quanto política.
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A Gazprom, estatal russa do setor energético, buscava alternativas para escoar seu gás diretamente para países parceiros, reduzindo riscos. Assim nasceu o TurkStream, uma obra bilionária, de execução complexa e com o selo de “alta sensibilidade geopolítica”, como classificaram diversos analistas internacionais.
Com um investimento estimado de US$ 11,4 bilhões, a construção começou em 2017 e levou menos de três anos até a inauguração oficial em janeiro de 2020. Foram usados navios de última geração para a colocação dos tubos a mais de 2.200 metros de profundidade, sob pressão intensa e condições severas do fundo marinho.
Capacidade de suprir dezenas de milhões de consumidores
O TurkStream é composto por dois tubos paralelos, cada um com capacidade de transportar 15,75 bilhões de metros cúbicos de gás natural por ano. Juntos, eles movimentam mais de 31 bilhões de m³ anuais — o suficiente para abastecer até 20 milhões de residências europeias, considerando uma média de consumo doméstico de 1.500 m³ por casa/ano.
O primeiro tubo é destinado ao mercado turco, que depende fortemente do gás russo para geração de energia e calefação. Já o segundo conecta-se à rede europeia, enviando gás por meio de estações de compressão e ramificações que seguem até Bulgária, Sérvia, Hungria, Bósnia e Herzegovina, e até partes da Romênia e Áustria.
Na prática, o TurkStream não apenas desviou parte significativa do fluxo que antes passava pela Ucrânia, como também fortaleceu os laços entre a Rússia e governos alinhados ao leste europeu, gerando reações intensas da União Europeia e dos Estados Unidos.
Um duto que desafia a geopolítica ocidental
A Rússia tem usado seu vasto sistema de dutos como instrumento de poder e negociação política há décadas. O TurkStream tornou-se mais um capítulo dessa estratégia: enquanto o Ocidente impõe sanções e tenta reduzir sua dependência do gás russo, Moscou oferece contratos atrativos, entregas confiáveis e acordos bilaterais vantajosos para países que optam por manter os laços energéticos.
Esse equilíbrio delicado ficou evidente após o início da guerra na Ucrânia, em 2022. Embora a Europa tenha acelerado projetos de diversificação energética, alguns países seguem fortemente dependentes do gás russo — especialmente os que recebem diretamente pelo TurkStream.
Além disso, o gasoduto reforça a posição estratégica da Turquia como hub energético. Ancara, por sua vez, aproveita sua localização para transitar entre o Oriente e o Ocidente, mantendo relações tanto com a Rússia quanto com a OTAN.
Engenharia de precisão: como o TurkStream foi instalado a mais de 2.000 metros de profundidade
Do ponto de vista técnico, o TurkStream também é impressionante. Os tubos foram fabricados com aço de alta resistência, pesando cerca de 9 toneladas por segmento. Cada tubo possui diâmetro interno de 814 mm, com paredes reforçadas e revestimento anticorrosão.
A colocação dos dutos foi feita principalmente pelo navio Pioneering Spirit, considerado um dos maiores e mais avançados navios de construção do mundo. Equipado com tecnologia de posicionamento dinâmico, o navio instalava cerca de 5 km de tubos por dia, mesmo em áreas de difícil acesso e profundidade extrema.
A profundidade máxima alcançada pelo gasoduto chega a 2.200 metros, tornando o TurkStream um dos gasodutos mais profundos já instalados sob o mar. Essa característica exigiu monitoramento constante, sondagens geotécnicas e uma série de simulações sísmicas para evitar riscos de colapso ou deslocamento.
Efeitos econômicos e logísticos no coração da Europa
Com a operação plena do TurkStream, a Rússia manteve sua fatia de mercado em regiões críticas do leste europeu. A Hungria, por exemplo, aumentou suas importações via TurkStream em mais de 30% em 2022, aproveitando a vantagem de contratos diretos com a Gazprom.
Além disso, a infraestrutura conectada ao gasoduto impulsionou investimentos locais, criação de empregos e aumento da receita aduaneira em países como Bulgária e Sérvia, que agora operam como pontos de trânsito e redistribuição do gás.
Para a Turquia, o projeto consolidou o país como porta de entrada energética da Europa, reforçando a construção de novos terminais, sistemas de estocagem e até uma nova bolsa de gás, planejada para regular preços regionais.
Uma “arma de longo alcance” no campo da energia
Apesar de sua aparência técnica e funcional, o TurkStream é muito mais do que tubos e válvulas. Ele é um exemplo claro de como infraestrutura energética pode se tornar uma ferramenta de influência internacional — silenciosa, mas extremamente eficaz.
A obra mostra que, mesmo em tempos de energias renováveis, o gás natural ainda desempenha papel central na matriz energética mundial — e que as rotas de fornecimento definem alianças, dependências e zonas de tensão geopolítica.
Em um mundo que tenta se equilibrar entre segurança energética e independência política, o TurkStream permanece como um lembrete de que quem controla a energia, muitas vezes, controla a diplomacia.