Juiz reconhece que FGTS acumulado durante o casamento deve ser dividido na partilha de bens. Entenda as regras, limites e impactos dessa decisão.
O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), criado pela Lei nº 8.036/1990, sempre foi tratado como uma reserva trabalhista individual, vinculada ao empregado e controlada pela Caixa Econômica Federal. Porém, quando há casamento ou união estável, surge a dúvida: esses valores podem ser partilhados em caso de divórcio? A jurisprudência brasileira consolidou uma resposta surpreendente: sim, os depósitos feitos durante o período conjugal integram o patrimônio comum e devem ser divididos entre os ex-cônjuges, dependendo do regime de bens.
Essa interpretação ganhou força em decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que firmou entendimento de que, nos casamentos em regime de comunhão parcial ou universal de bens, o saldo do FGTS constituído durante a união pertence ao casal. Ou seja, não se trata de herança individual apenas do trabalhador, mas de um bem partilhável, assim como imóveis ou aplicações financeiras adquiridas na constância do casamento.
Decisões judiciais que consolidaram o direito
A questão não foi pacífica por muito tempo. Muitos tribunais entendiam que o FGTS só poderia ser partilhado quando sacado, pois a conta é vinculada e possui regras rígidas de movimentação. Contudo, o STJ mudou o paradigma em decisões marcantes.
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Em 2016, por exemplo, a Corte reconheceu que os valores depositados durante o casamento integram a comunhão e podem ser objeto de partilha, mesmo que ainda não tenham sido levantados.
Tribunais estaduais como o do Distrito Federal (TJDFT) e de São Paulo (TJSP) também passaram a aplicar o entendimento, determinando que a Caixa Econômica Federal seja comunicada após a sentença de divórcio, reservando a metade do saldo em favor do ex-cônjuge. A lógica é simples: o dinheiro ainda não disponível é considerado patrimônio em formação, fruto do trabalho durante o casamento, e por isso deve ser dividido.
O limite temporal: o que entra e o que fica de fora
O direito não é ilimitado. Somente os depósitos feitos durante o casamento ou união estável entram na conta da partilha.
Valores depositados antes da união ou depois da separação de fato não são comunicáveis. Assim, o juiz precisa analisar os extratos da conta vinculada para identificar em quais períodos houve contribuição e aplicar a meação apenas sobre essa fração.
Outro ponto importante é o uso do FGTS já sacado. Caso o dinheiro tenha sido aplicado em benefício comum da família, como na compra de um imóvel residencial, o bem adquirido passa a compor a partilha.
Se, ao contrário, os saques foram realizados para fins individuais antes da separação, pode haver disputa judicial para verificar se houve lesão ao patrimônio do casal.
A relação com o regime de bens
O regime de bens definido no casamento ou na união estável é determinante. Na comunhão parcial de bens, a regra geral no Brasil, todos os valores adquiridos após o matrimônio são comuns, e isso inclui o FGTS.
Na comunhão universal, não há dúvidas: todos os bens, presentes e futuros, são partilhados, salvo cláusulas em pacto antenupcial. Já na separação total, cada cônjuge mantém o que é seu, e o FGTS não se comunica.
O Código Civil, em seus artigos 1.658 a 1.660, deixa claro que bens adquiridos onerosamente durante a constância do casamento integram a comunhão, salvo exceções expressas.
O trabalho remunerado e seus frutos — salário, bônus e contribuições sociais como o FGTS — estão nesse rol, o que fundamenta juridicamente as decisões judiciais de partilha.
Impactos práticos para trabalhadores e famílias
Esse entendimento tem repercussão direta em milhares de divórcios no Brasil. Para o trabalhador, o saldo do FGTS deixa de ser considerado uma reserva exclusiva e passa a integrar o patrimônio familiar.
Para o ex-cônjuge, significa uma proteção econômica, já que pode acessar metade de um valor acumulado durante anos de esforço em conjunto.
Advogados de família destacam que a decisão também traz equilíbrio e justiça ao processo de separação. Afinal, o FGTS é fruto do trabalho realizado durante o casamento, período em que, muitas vezes, o outro cônjuge contribuiu de forma indireta para a manutenção da casa, criação de filhos ou apoio à carreira profissional.
As críticas e os desafios do entendimento
Apesar da consolidação, o tema ainda gera debates. Críticos apontam que a vinculação do FGTS tem finalidades específicas como aquisição da casa própria, aposentadoria ou demissão sem justa causa — e que sua partilha poderia comprometer a finalidade social do fundo. Além disso, há quem argumente que o saque antecipado em razão da partilha pode gerar burocracia e sobrecarregar a Caixa Econômica Federal.
Do outro lado, especialistas em Direito de Família afirmam que não se trata de violar a legislação do FGTS, mas de reconhecer a meação no momento oportuno.
O valor só será liberado em hipóteses legais de saque, mas a divisão patrimonial já estará reconhecida na sentença, garantindo o direito futuro.
O futuro da jurisprudência sobre FGTS em divórcios
A tendência é que a jurisprudência permaneça firme em favor da partilha, especialmente após decisões reiteradas do STJ. A advocacia de família já se organiza para incluir automaticamente o FGTS nos pedidos de partilha em processos de divórcio, e juízes de primeira instância seguem esse entendimento.
No futuro, pode haver regulamentação mais clara por parte do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ou até ajustes legislativos, para padronizar a forma como a Caixa deve proceder nesses casos e evitar disputas prolongadas.
Enquanto isso, cada divórcio que chega aos tribunais reforça a consolidação de que o FGTS não é um benefício isolado, mas um patrimônio construído a dois.
Um direito que muda o divórcio no Brasil
A decisão judicial que reconhece ao ex-cônjuge o direito à metade do FGTS depositado durante o casamento marca um ponto de virada na compreensão patrimonial do matrimônio no Brasil. Mais do que uma questão trabalhista, trata-se de um reconhecimento jurídico de que o esforço comum constrói não apenas lares e famílias, mas também reservas financeiras, ainda que invisíveis no dia a dia.
Em tempos em que divórcios se tornam cada vez mais frequentes, essa jurisprudência traz previsibilidade e justiça, equilibrando direitos e deveres de quem um dia dividiu a mesma vida. E lança um alerta: o patrimônio familiar vai além do que está no banco ou na escritura de imóveis.
Até mesmo o fundo criado para proteger o trabalhador pode, em última instância, se transformar em um patrimônio do casal.