Montadoras iniciam corrida pela reciclagem de veículos no Brasil em meio a novas regras de incentivos fiscais, abrindo centros de desmontagem e mirando bilhões em um mercado ainda pouco explorado no país.
O avanço do Programa Mover e do chamado IPI Verde colocou a reciclabilidade dos veículos no centro da estratégia das montadoras no Brasil.
As novas regras preveem descontos tributários atrelados a critérios ambientais, entre eles a proporção de materiais recicláveis e o reaproveitamento de componentes.
Diante dessa mudança, grupos como Stellantis, Toyota e Volvo aceleram planos para estruturar operações de economia circular no país, de olho em um mercado ainda incipiente e com potencial de faturar bilhões de reais.
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Segundo a Stellantis, a área é rentável em outros mercados e tende a ser aqui também.
No decreto que regulamenta o Mover, o governo prevê redução de até dois pontos percentuais no IPI para veículos que cumprirem níveis de reciclabilidade, além de outras faixas de bônus por eficiência e tecnologia.
Incentivo fiscal muda o jogo no setor automotivo
O IPI Verde redefiniu as alíquotas e criou bonificações para carros mais eficientes, seguros e com maior índice de reciclabilidade.
No caso dos compactos com alta eficiência energética-ambiental, fabricados no país e com conteúdo reciclável elevado, a alíquota pode chegar a zero, na modalidade Carro Sustentável.
Para os demais, aplica-se uma alíquota-base ajustada por bônus e malus conforme variáveis como eficiência, propulsão e reciclabilidade.
Entre os exemplos divulgados, o governo detalhou que a reciclabilidade pode garantir até 2 pontos percentuais de desconto no IPI, componente que se soma a outros critérios como eficiência e tecnologia de segurança.
Stellantis abre centro pioneiro de desmontagem
Em agosto, a Stellantis inaugurou em Osasco (SP) o Circular AutoPeças, espaço dedicado à desmontagem, reaproveitamento e reciclagem de veículos.
Trata-se do primeiro centro do tipo operado por uma montadora na América do Sul, com capacidade de desmontar até 8 mil veículos por ano e investimento de R$ 13 milhões na estrutura.
A presença do presidente da companhia na região, Emanuele Cappellano, e da vice-presidente sênior global de Economia Circular, Laurence Hansen, reforçou o peso estratégico do projeto.
“Estamos falando de um potencial não de milhões, mas de bilhões de reais”, disse Hansen em conversa com jornalistas durante a passagem pelo país.
Ainda nesse contexto, Hansen afirmou que a América do Sul permanece atrasada em economia circular automotiva e que a Stellantis quer liderar o processo localmente.
Segundo a executiva, a área já se paga em mercados como Europa e Estados Unidos e, por isso, a empresa decidiu antecipar movimentos no Brasil.
A estimativa setorial é que apenas 1,5% dos veículos em fim de vida no país sejam hoje encaminhados a reaproveitamento/reciclagem formal, o que expõe o espaço para crescimento do segmento.
Toyota e Volvo aderem à estratégia de reciclagem
A Toyota também avalia implantar um centro de reciclagem no Brasil, alinhando-se à tendência global e às diretrizes do Mover.
O presidente para a região, Rafael Chang, vem defendendo a ampliação do portfólio eletrificado e a adoção de medidas que reduzam custos e emissões, enquanto prepara novas fases de investimento industrial no país.
Em paralelo, a Volvo Car Brasil manifesta interesse em participar do ciclo de reciclagem, atenta ao gatilho tributário.
Para o presidente Marcelo Godoy, a redução do IPI pode chegar a 2 pontos percentuais quando o veículo cumpre níveis de reciclabilidade, além de outras condições de eficiência.
Panorama internacional pressiona por metas
Em mercados maduros, a reciclagem automotiva é tratada como política pública consolidada.
Na União Europeia, vigoram metas de pelo menos 85% de reutilização e reciclagem e 95% de recuperação por peso por veículo.
Os parâmetros vêm sendo atualizados em um novo regulamento para ampliar o conteúdo reciclado e fortalecer a responsabilidade do fabricante sobre o ciclo de vida.
O desenho proposto também reforça o descarte em instalações autorizadas, rastreabilidade e proibições ao envio de carros fora de uso para mercados onde não possam circular.
No Japão, o sistema é maduro e ancorado em legislação específica, com altas taxas de reaproveitamento e reciclagem.
O financiamento é sustentado por taxas embutidas na compra do veículo para cobrir o tratamento no fim de vida.
Embora os critérios e metodologias diferirem dos europeus, trata-se de referência em infraestrutura de desmontagem e valorização de materiais, além de políticas para airbags, fluidos e resíduos de trituração.
Como as montadoras aplicam os “4R”
No plano da Stellantis, a estratégia de sustentabilidade se apoia nos “quatro erres”: reparar, reciclar, reutilizar e remanufaturar.
Enquanto Europa e Estados Unidos se encontram em estágio mais avançado, o Brasil passa a receber investimentos prioritários em reciclagem e remanufatura.
Na prática, isso envolve recuperar componentes para revenda com rastreabilidade do Detran, reintroduzir matérias-primas na cadeia e remanar peças de maior valor agregado.
O processo reduz custos, emissões e dependência de insumos virgens.
Para o consumidor, a oferta de peças certificadas tende a baratear o pós-venda e ampliar a segurança de origem.
Desafios da reciclagem no Brasil
Apesar do ímpeto recente, o ecossistema brasileiro ainda enfrenta gargalos.
A malha de desmontes particulares opera com níveis variados de formalização.
Há também desafios de logística para coletar, transportar e tratar veículos em fim de vida em um país de dimensões continentais.
Falta padronização de dados sobre volumes, destinos e recuperação de materiais.
Isso dificulta medir indicadores nacionais e desenhar políticas mais precisas para atrair investimento e escalar a reciclagem.
Setores público e privado trabalham em regulações e sistemas eletrônicos para rastrear componentes e certificar operações, mas a implementação ainda é desigual entre estados.
Próximos passos para o setor
A combinação de incentivo tributário, novas plantas de desmontagem e pressão regulatória internacional cria um sinal econômico claro para a indústria.
A Stellantis já ocupa o protagonismo com o centro de Osasco e mantém a economia circular como frente de negócios.
A Toyota avalia passos em direção a um desmanche próprio, enquanto a Volvo acompanha o desenho do IPI Verde para calibrar lançamentos e metas de reciclabilidade.
A leitura comum é que a reciclagem deixa de ser apenas um compromisso ambiental e passa a integrar a equação de rentabilidade.
Não por acaso, ao ser questionada sobre o “por que agora?”, a executiva da Stellantis foi direta: “Porque tem um enorme potencial. A empresa não investe em projetos sem perspectiva de rentabilidade”.
Com a engrenagem fiscal girando e os primeiros ativos industriais no ar, a dúvida passa a ser velocidade de escala: o Brasil conseguirá sair de 1,5% de reaproveitamento formal para um patamar compatível com seu tamanho de mercado e com as exigências globais de circularidade nos próximos anos?