Casas no bairro Canaã VI, em Dourados (MS), apresentam rachaduras e afundamentos desde 2019. O motivo? O bairro foi erguido sobre um antigo lixão desativado sem descontaminação adequada.
Em vez do sonho da casa própria, centenas de famílias em Dourados (MS) enfrentam um verdadeiro pesadelo urbano. Moradores do bairro Canaã VI, um loteamento criado para abrigar famílias de baixa renda, começaram a notar rachaduras nas paredes, pisos afundando, portas desalinhadas e estruturas comprometidas. O que parecia um problema pontual revelou-se um erro grave de engenharia e planejamento urbano: o bairro foi construído sobre um antigo lixão.
Bairro sobre lixão: um risco silencioso no subsolo
Segundo levantamento do Ministério Público Estadual (MPMS), a área onde o bairro Canaã VI foi implantado funcionou como depósito de lixo da cidade por mais de 20 anos, entre as décadas de 1970 e 1990. Após a desativação, o terreno não passou por um processo adequado de reabilitação ambiental ou descontaminação do solo — condição básica antes de qualquer urbanização.
E o resultado agora é visível: o solo está instável, gases da decomposição de resíduos se acumulam em bolsões subterrâneos e o movimento lento do terreno provoca recalques e fissuras em construções erguidas há menos de uma década.
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Canaã VI: um bairro “planejado” sobre a decomposição
O bairro Canaã VI foi lançado em 2010 com a proposta de oferecer moradias dignas a famílias em situação de vulnerabilidade, dentro de um programa municipal de habitação. As unidades foram construídas pela Cohab de Dourados em parceria com o governo estadual e federal. Porém, nenhum laudo técnico ambiental foi divulgado publicamente na época sobre as condições do solo.
As famílias receberam as chaves entre 2011 e 2012. Em menos de cinco anos, começaram as primeiras reclamações.
“As paredes começaram a rachar, o chão afundou”, dizem moradores
A aposentada Maria do Carmo, 66 anos, foi uma das primeiras moradoras do Canaã VI. Ela relata que as rachaduras começaram pequenas, como trincas em azulejos, e em dois anos já atingiam o teto e a fundação. “Eu troquei o piso duas vezes. A parede da sala começou a abrir, e o chão afundou perto do banheiro”, conta.
Assim como ela, dezenas de famílias passaram a relatar problemas semelhantes. Algumas casas chegaram a ser interditadas. Em 2018, moradores organizaram um abaixo-assinado cobrando da prefeitura e da Cohab uma resposta urgente.
Presença de gás metano e solo instável confirmados por laudo técnico
Após as denúncias, o Ministério Público Estadual solicitou uma análise geotécnica e ambiental independente, realizada por uma empresa contratada pelo município. O laudo, concluído em 2019, confirmou a presença de gás metano — resultante da decomposição da matéria orgânica enterrada — e apontou instabilidade do solo em pelo menos 30% das unidades habitacionais do bairro.
O documento também revelou que o lençol freático da região apresentava indícios de contaminação por chorume, embora abaixo dos limites máximos tolerados. Ainda assim, o risco estrutural e ambiental é considerado alto.
Com base no laudo técnico e nas denúncias, o MPMS propôs um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para que a Prefeitura de Dourados e a Cohab adotassem medidas imediatas:
- Instalação de sistema de drenagem de gases;
- Monitoramento contínuo do solo e da qualidade da água subterrânea;
- Reforço estrutural em imóveis mais comprometidos;
- Plano de remediação ambiental do terreno.
A proposta do TAC ainda está em discussão. Enquanto isso, as famílias seguem morando em casas com risco crescente.
Fonte oficial: MPE sugere TAC para descontaminar área de bairro construído sobre lixão – Dourados News
Bairros sobre lixão: o problema não é novo
O caso de Dourados expõe um problema antigo e recorrente no Brasil: a transformação de áreas contaminadas ou instáveis em loteamentos urbanos, sem o devido preparo técnico.
Casos semelhantes já foram registrados em:
- São Paulo (SP): onde áreas como o bairro Cangaíba foram afetadas por recalques após urbanização sobre lixões.
- Belo Horizonte (MG): registros no Aglomerado da Serra.
- Ribeirão Preto (SP): a Cohab teve de indenizar famílias por imóveis construídos sobre solo instável (Fonte: Tribunal de Justiça de SP).
Como prevenir esse tipo de tragédia urbana?
Segundo o geólogo Marcus T. Silva, especialista em risco geotécnico, é preciso seguir normas rígidas antes de liberar áreas para construção:
“Um solo de lixão pode levar décadas para se estabilizar. É preciso fazer compactação, drenagem de gases, impermeabilização e, principalmente, laudos técnicos públicos e auditáveis.”
A Resolução CONAMA nº 420 e a ABNT NBR 10004 estabelecem normas técnicas para reabilitação de áreas contaminadas, mas nem sempre são seguidas à risca por municípios pressionados por déficit habitacional ou interesses políticos.
E o futuro do Canaã VI?
O futuro do bairro ainda é incerto. Segundo reportagem da 94 FM Dourados, a prefeitura prometeu resolver o problema até 2020, mas nenhuma obra de remediação foi efetivamente iniciada até 2024. O local continua habitado, com famílias convivendo com rachaduras visíveis e relatos de mau cheiro vindo do solo após chuvas intensas.
O caso do Canaã VI é um alerta duro, porém necessário: construir sobre lixo custa mais caro do que aparenta. O que poderia ter sido um exemplo de urbanização responsável virou um símbolo de negligência institucional.
Moradores exigem justiça, segurança e transparência. Mas, até agora, a rachadura mais profunda é a da confiança entre população e poder público.