Decisão do STJ cria “inventariante digital” e abre caminho para que a justiça acesse dados em busca de patrimônio, segundo análise do Consultor Jurídico.
A privacidade de dados após a morte não está garantida no Brasil, mesmo com testamentos, criptografia avançada ou ferramentas de gerenciamento de contas do Google e da Apple. A Justiça pode, e provavelmente irá, derrubar essas barreiras se houver suspeita de patrimônio digital a ser incluído em um inventário. Isso ficou claro após uma decisão recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, na prática, autorizou a investigação de bens digitais deixados por pessoas falecidas.
A análise, baseada em entrevistas de advogados especialistas ao portal Consultor Jurídico, aponta que a criação da figura do “inventariante digital” pelo STJ (REsp 2.124.424) expõe um vácuo legal profundo. Sem leis claras no Código Civil sobre herança digital, o Judiciário está tendo que se adaptar para lidar com a complexa divisão de criptomoedas, contas bancárias online, milhas aéreas e o conteúdo existencial, como fotos e mensagens privadas.
O vácuo legal e a adaptação da justiça
A decisão do STJ que acendeu o alerta estabeleceu a possibilidade de nomear um perito, chamado pela ministra relatora, Nancy Andrighi, de “inventariante digital”. A função dessa pessoa é extrair dados de dispositivos eletrônicos do falecido (como smartphones e computadores) e analisar o que tem conteúdo patrimonial, ou seja, valor econômico, e o que é estritamente pessoal. Apenas o conteúdo patrimonial deve ser transmitido aos herdeiros e incluído no inventário.
-
STJ fecha brecha de proteção: valor de seguro de vida resgatável vira investimento e pode ser penhorado por dívidas, decide Terceira Turma
-
STF e STJ ignoram lei e implodem segurança jurídica: cortes mudam regras de dívidas e impostos sem definir quando valem, gerando caos processual
-
Milhares de brasileiros correm risco de perder pensão por morte e auxílio doença ao parar de pagar INSS
-
Aluguel sem dor de cabeça: funções, obrigações e direitos de locador e locatário
Segundo os especialistas ouvidos pelo Consultor Jurídico, essa adaptação judicial foi necessária diante da completa omissão da legislação. O Código Civil brasileiro não regula a herança digital. Embora o Projeto de Lei 4/2025, que reforma o código, tente abordar o tema, ele ainda não está em vigor. Normas atuais, como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), são consideradas insuficientes para resolver as complexidades do direito sucessório.
O desafio de classificar a herança digital
Um dos maiores problemas enfrentados pela Justiça é a ausência de critérios claros para distinguir os tipos de bens digitais. Conforme explicou Felipe Russomanno, sócio do escritório Cescon Barrieu, ao Consultor Jurídico, isso resulta em conflitos entre os direitos sucessórios (dos herdeiros) e os direitos da personalidade (a intimidade e privacidade de quem morreu). A classificação jurídica atual, ainda controversa, se divide em três categorias: bens patrimoniais (criptomoedas, contas), bens existenciais (fotos, redes sociais) e direitos digitais da personalidade (e-mails íntimos, correspondências privadas).
Rodrigo Forlani Lopes, do Machado Associados, acrescentou na mesma reportagem que os conceitos propostos na reforma do Código Civil, como “valor economicamente apreciável”, ainda são vagos e imprecisos. Enquanto a lei não chega, a Justiça decide caso a caso, o que gera decisões diferentes para casos semelhantes e uma grande falta de previsibilidade. Para Lopes, a decisão do STJ, embora inovadora, não resolve a lacuna e pode, inclusive, aumentar a litigiosidade (o número de disputas judiciais) entre herdeiros.
Ferramentas de privacidade: eficazes ou ilusórias?
Muitos usuários de tecnologia confiam nas ferramentas oferecidas pelas próprias plataformas para garantir sua privacidade pós-morte. O Consultor Jurídico destaca que as principais plataformas, de fato, oferecem opções: o Gerenciador de Conta Inativa do Google (que pode apagar dados ou entregar a um contato de confiança após um período) e o Contato de Legado da Apple (que permite a um herdeiro designado acessar fotos e dados do iCloud). O Facebook também permite transformar perfis em memoriais.
Contudo, os especialistas alertam que essas ferramentas têm limitações legais severas. Felipe Russomanno ressalta que, se for comprovado que o conteúdo possui valor patrimonial, ele não poderá ser simplesmente excluído pela plataforma, mesmo que essa fosse a vontade do usuário. A Justiça pode intervir. Além disso, tecnicamente, backups automáticos em nuvem, dados em servidores estrangeiros e técnicas de recuperação forense podem resgatar informações que o usuário acreditava ter destruído.
O testamento pode ser ignorado pela justiça?
A rota mais tradicional, o testamento, também se mostra frágil nesse cenário. Aracy Barbara, sócia do VBD Advogados, citou ao Consultor Jurídico que é possível incluir disposições expressas no documento determinando a exclusão de dados ou nomeando um “testamenteiro” (executor do testamento) com poderes específicos para essa finalidade. Outra alternativa seria o uso de criptografia forte ou softwares de autodestruição de dados.
Ainda assim, nada garante que essa vontade será soberana. Bruno Batista, da banca Innocenti Advogados, foi taxativo em sua análise ao portal: “evitar que as informações sejam acessadas para sempre e por quaisquer pessoas nos parece impossível“. Se houver uma disputa familiar ou indícios de ocultação de bens (como uma carteira de Bitcoin), um juiz pode autorizar a quebra da criptografia ou simplesmente anular a cláusila do testamento que impedia o acesso. Na prática, a Justiça tem priorizado o direito dos herdeiros ao patrimônio em detrimento do direito à privacidade do falecido.
Você já pensou sobre seu legado digital? Acredita que a Justiça deve ter o poder de acessar dados privados de quem já faleceu para encontrar patrimônio, ou a privacidade deveria ser absoluta? Deixe sua opinião nos comentários, queremos entender como você vê esse dilema.