Mineradora canadense expande atividades no Vale do Jequitinhonha e gera críticas por alto consumo de água em região seca, denúncias de poluição e alerta de impactos ambientais e sociais nas comunidades locais.
A mineradora canadense Sigma Lithium, instalada no Vale do Jequitinhonha (MG), tem outorga para captar 3,6 milhões de litros por dia do rio Jequitinhonha e, segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), só passou a ser obrigada ao automonitoramento mensal em 1º de julho de 2025, com envio dos relatórios em janeiro de 2026.
Enquanto isso, moradores das cidades de Araçuaí e Itinga, em cenário de seca recorrente, denunciam “apartheid hídrico” e relatam piora na qualidade da água do ribeirão Piauí, segundo reportagem publicada pelo jornal O Tempo nesta quinta-feira (18).
Consumo de água e transparência dos dados
Nas redes sociais, a empresa se apresenta como produtora de “lítio verde” e afirma operar com baixo consumo hídrico.
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Em publicações, cita uso de “30 m³ por hora”, o que equivaleria a 720 mil litros diários.
Em nota enviada à reportagem, contudo, a própria Sigma reconheceu que, em 2024, operou com 80 m³/h – cerca de 1,9 milhão de litros por dia – captados no Jequitinhonha, volume que diz recircular internamente em grande parte.
A companhia sustenta que seu “consumo real” é inferior ao limite da outorga e que a taxa de captação não aumentará com a expansão planejada.
Seca histórica e cidades vulneráveis
Araçuaí e Itinga aparecem como municípios altamente sensíveis às mudanças climáticas no Índice Mineiro de Vulnerabilidade Climática (IMVC) de 2024, elaborado pela Semad.
Entre 2020 e 2024, o Vale do Jequitinhonha registrou centenas de decretos de situação de emergência por seca e estiagem, colocando a região entre as mais afetadas do estado de Minas, de acordo com balanços oficiais da Defesa Civil.
Nesse contexto, movimentos sociais, pesquisadores e autoridades reunidos no evento Clímax 2025 formaram uma coalizão para cobrar regras mais rígidas ao setor de lítio, de acordo com apuração do jornal O Tempo.
Ribeirão Piauí no foco das queixas
A comunidade de Piauí Poço Dantas, em Itinga, vizinha às operações, relata mudanças no ribeirão Piauí, afluente da margem direita do Jequitinhonha.
Moradores afirmam que a água ficou turva e que a recreação no curso d’água deixou de ser possível.
“Hoje não tem como mais, com essa água barrenta”, disse a moradora Maura Ribeiro dos Santos, 56, em entrevista concedida ao jornal O Tempo.
Há também queixas sobre queda na produtividade do solo nas áreas limítrofes da mina.
Fiscalização e “apartheid hídrico”
A coalizão do Clímax 2025 cunhou o termo “apartheid hídrico” para descrever a desigualdade de acesso à água entre operações industriais e comunidades.
O grupo afirma que, enquanto a empresa dispõe de autorização para grandes volumes, famílias sobreviveriam com poucos litros por dia e dependeriam de caminhões-pipa, considerados insuficientes pelos moradores.
A ANA confirmou que não dispunha de relatórios de uso anteriores à obrigatoriedade de 2025 e informou que a mineradora deverá encaminhar o automonitoramento referente ao período a partir de janeiro de 2026.
O jornal O Tempo também apontou que a empresa teria orientado moradores a evitar o consumo da água do ribeirão por riscos de irritação na pele, oferecendo caminhões-pipa como alternativa, medida considerada insuficiente pelas comunidades.
Alerta do MPF sobre impactos no curso d’água
No início de setembro, o Ministério Público Federal recomendou à Agência Nacional de Mineração (ANM) a suspensão e revisão de autorizações de pesquisa e lavra de lítio na região, citando falhas como ausência de consulta prévia a povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.
Laudos técnicos do MPF apontaram risco de rebaixamento do nível d’água do ribeirão Piauí devido à localização de duas cavas e registraram a proximidade das pilhas de estéril da Sigma em trechos a menos de 100 metros do curso hídrico.
Para o procurador da República Helder Magno da Silva, “é dever do Estado garantir o direito à consulta prévia, livre e informada”.
Expansão em análise e aumento da área ocupada
A Sigma busca licenciamento para ampliar a Fase 2 do Projeto Grota do Cirilo, com proposta que dobra a capacidade anual de produção.
Com a ampliação, a área ocupada passaria a 342 hectares, incluindo 192,3 ha destinados a pilhas de estéril e 149,7 ha de supressão vegetal para extração, dimensão comparada a cerca de 480 gramados do Mineirão.
Em 2024, a empresa informou ter extraído 1,5 milhão de toneladas de minério, resultando em 270 mil toneladas de concentrado de óxido de lítio. A diferença compõe pilhas de material estéril visíveis na paisagem local.
Disputa sobre método de lavra e volume de rejeito
Pesquisadores de UFMG, Unimontes e UFVJM analisaram estudos da própria mineradora e apontaram que, embora exista mineração subterrânea de lítio a poucos quilômetros dali, a Sigma optou por lavra a céu aberto, método que, segundo os especialistas, gera proporção muito maior de rejeito e demanda mais área para pilhas de estéril.
Eles comparam o cenário com o de uma mineradora vizinha que atua em subsolo há três décadas, com menor ocupação territorial e impacto visual.
Em avaliação técnica, o engenheiro de minas Hernani Mota de Lima explica, de forma geral, que a lavra a céu aberto “muda de forma considerável a paisagem local”, com maior geração de poeira e ruído quando não há controle adequado, ainda que a escolha dependa também da geologia e da geometria do corpo mineral.
O que dizem a empresa e os órgãos ambientais
Em resposta, a Sigma afirma ter seguido “integralmente” o rito do licenciamento e defende que a lavra a céu aberto oferece “maior transparência” e facilidade de fiscalização, por se tratar de operações visíveis a sociedade e reguladores.
A companhia lista como razões técnicas e socioambientais preservação da APP do ribeirão Piauí, manutenção de modos de vida ribeirinhos e a possibilidade de operar duas frentes para repartir a CFEM entre Araçuaí e Itinga.
Sobre a água, diz que recicla a maior parte do volume captado por meio de sistemas internos de reaproveitamento.
A Semad e a Feam informaram que a ampliação está em análise técnica.
Segundo as autarquias, a legislação exige a avaliação de alternativas tecnológicas e locacionais e a definição do método de lavra considera fatores como profundidade e geometria da jazida, relação estéril/minério e presença de recursos hídricos subterrâneos.
O órgão afirma ter realizado quatro vistorias para subsidiar a decisão.
Qualidade da água e monitoramento
A mineradora declara que monitora mensalmente a qualidade do ribeirão Piauí desde a fase pré-operacional, com análises por empresas independentes.
Relata que, antes do início das atividades, já havia níveis elevados de coliformes fecais e altas concentrações naturais de ferro, manganês e alumínio, compatíveis com a litologia da região.
Moradores, por sua vez, atribuem à mineração a piora mais recente da água e dizem ter sido orientados a evitar o consumo direto do ribeirão.
A checagem conclusiva dessas alegações depende de laudos públicos com séries históricas e parâmetros comparáveis, ainda não disponíveis.
Em uma região sob estresse hídrico e com expansão mineral em curso, que mecanismos de controle, transparência e participação social precisam entrar em campo para garantir o uso equilibrado da água e a segurança das comunidades?