Uma lei federal determina que toda a arrecadação com infrações seja reinvestida em melhorias no trânsito, mas a falta de dados claros impede o cidadão de fiscalizar como o dinheiro é realmente gasto.
O destino de bilhões de reais arrecadados anualmente com multas de trânsito no Brasil é um dos segredos mais bem guardados da administração pública. Embora uma lei federal clara e específica, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), determine que cada centavo pago por um motorista infrator deve ser carimbado para uso exclusivo em melhorias viárias, um verdadeiro “apagão” na transparência impede que a sociedade fiscalize o ciclo completo do dinheiro. O resultado é um abismo de desconfiança que alimenta a percepção popular de uma “indústria da multa” mais interessada em arrecadar do que em educar.
Enquanto a fiscalização se intensifica, como aponta um aumento de 43% no número de autuações aplicadas pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) apenas entre 2022 e 2023, a prestação de contas não acompanha o mesmo ritmo. A falha sistêmica em apresentar relatórios claros sobre como esses recursos são convertidos em asfalto novo, sinalização eficiente ou campanhas educativas mina a legitimidade do sistema. A lei promete um ciclo virtuoso de investimento, mas a realidade entrega um labirinto de dados opacos e portais de transparência que mais escondem do que revelam.
O dinheiro carimbado: o que diz a lei federal?
No coração de toda a discussão está o Artigo 320 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Este dispositivo legal é a pedra fundamental que define o roteiro obrigatório do dinheiro das multas. De forma taxativa, o artigo estabelece que a receita arrecadada deve ser aplicada, “exclusivamente”, em cinco áreas estratégicas: sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito. A palavra “exclusivamente” é a chave de todo o sistema, pois proíbe legalmente que os governos utilizem esses valores para cobrir despesas genéricas do orçamento, como saúde, pagamento de servidores de outras áreas ou qualquer outra finalidade que não seja diretamente ligada à melhoria da segurança viária.
-
Lei em vigor encerra a desoneração da folha, aumenta o imposto para 17 setores e já pressiona o preço de transportes e produtos; entenda como funciona
-
Profissão antes deixada de lado por muitos, agora está em alta no Brasil com salários que podem chegar a R$ 8 mil mensais
-
Malha fina do auxílio: a conta de R$ 478 milhões chegou para 177 mil famílias, veja quem precisa devolver
-
O Cadastro Positivo de Condutores já permite que motoristas sem multas nos últimos 12 meses recebam benefícios, como descontos em pedágios e no seguro do carro
Essa determinação transforma a multa em uma “receita carimbada”, ou seja, um dinheiro com destino vinculado e que não pode ser desviado. Isso significa que, na prática, o valor pago por um excesso de velocidade deveria, por lei, se transformar em um semáforo novo, na pintura de uma faixa de pedestres, na operação tapa-buracos de uma via ou na compra de bafômetros para a polícia. O detalhamento do que pode ser pago é tão específico que inclui desde a aquisição de viaturas e uniformes para agentes até a construção de calçadas, ciclovias e a realização de campanhas educativas nas escolas. Qualquer uso fora dessas diretrizes é, perante a lei, ilegal.
Bilhões em jogo: a arrecadação federal e a falha na prestação de contas
Para entender a magnitude dos valores envolvidos, basta olhar para os números da esfera federal. Dados da Polícia Rodoviária Federal (PRF) mostram que o número de multas saltou de 4,1 milhões em 2022 para 5,9 milhões em 2023, um crescimento de 43% em apenas um ano. Desse total, mais da metade (cerca de 3 milhões) foram por excesso de velocidade, a infração mais comum nas rodovias federais. Essa arrecadação bilionária, no entanto, entra em um sistema onde a rastreabilidade se torna um desafio, mesmo nos portais oficiais do governo.
O problema se agrava quando o próprio governo federal parece contornar o espírito da lei federal. O CTB determina que 5% de todo o valor arrecadado com multas no país seja destinado ao Fundo Nacional de Segurança e Educação de Trânsito (FUNSET). Contudo, uma análise da Confederação Nacional de Municípios (CNM) aponta que, historicamente, a União falha em aplicar esses recursos, retendo verbas do fundo para cumprir metas fiscais. Essa prática, identificada pela CNM, é a prova de que o “apagão” na transparência não é um mero descuido, mas uma estratégia que desvia recursos da educação de trânsito para o caixa geral do governo, contrariando diretamente o que manda o Artigo 320.
O ponto cego: por que fiscalizar o dinheiro na sua cidade é quase impossível?
Se rastrear os recursos federais é complexo, a situação nos estados e, principalmente, nos municípios, pode ser descrita como uma verdadeira caixa-preta. É no nível municipal que a maior parte das multas é aplicada e onde o cidadão deveria sentir o impacto positivo dos investimentos. No entanto, é justamente ali que a transparência é mais frágil. Muitos municípios simplesmente não publicam os relatórios detalhados de arrecadação e despesas exigidos por lei, ou o fazem de forma tão técnica e escondida em seus portais que a consulta se torna inviável para o cidadão comum.
Essa opacidade generalizada é o principal combustível para a desconfiança. Quando um motorista é multado por um radar escondido em sua cidade e, meses depois, passa pelo mesmo local e o asfalto continua esburacado e a sinalização, precária, a conclusão de que o sistema visa apenas arrecadar se torna quase inevitável. A ausência de uma prestação de contas clara e visível impede a criação de um vínculo de confiança entre a fiscalização e a população. A lei existe para garantir que a punição se reverta em benefício coletivo, mas sem transparência, ela se torna letra morta, e a multa é vista apenas como um imposto disfarçado.
Mitos e verdades: o que a lei realmente diz sobre o trânsito?
O vácuo deixado pela falta de informação clara abre espaço para a disseminação de mitos que podem custar caro ao motorista. Conhecer a realidade é o primeiro passo para uma condução mais segura e consciente, evitando infrações por puro desconhecimento.
- Avançar o sinal de madrugada não dá multa? Falso. O Código de Trânsito Brasileiro não prevê exceção de horário para essa infração, que é considerada gravíssima. A penalidade é a mesma, independentemente de ser dia ou noite. A única exceção ocorre quando há uma placa específica autorizando a conversão à direita mesmo com o sinal fechado.
- Se a notificação não chegar pelo correio, não preciso pagar? Falso. Embora a notificação postal seja comum, os órgãos de trânsito podem notificar o infrator por meio eletrônico (para quem aderiu ao SNE) ou, em último caso, por edital em diário oficial. A responsabilidade de acompanhar a situação do veículo é do proprietário.
- Radares são apenas ‘caça-níqueis’? Parcialmente Falso. Embora existam casos de equipamentos irregulares ou mal sinalizados, o que é ilegal e deve ser contestado, os radares são considerados uma ferramenta eficaz para coibir o excesso de velocidade, uma das principais causas de acidentes fatais. A lei exige sinalização clara sobre a velocidade máxima da via. O debate deveria ser sobre a transparência nos critérios de instalação, e não sobre a existência do equipamento.
- O dinheiro da multa vai para um caixa geral do governo? Legalmente Falso, Praticamente Opaco. Este é o cerne do problema. A lei federal, conforme o Artigo 320 do CTB, proíbe isso. O dinheiro é “carimbado” para o trânsito. No entanto, a falha crônica na transparência, como demonstrado pela retenção de verbas do FUNSET apontada pela CNM, impede que o cidadão verifique essa aplicação na prática. É essa opacidade que torna o mito tão poderoso e crível.
A análise dos fatos revela um paradoxo: o Brasil tem uma legislação robusta que deveria garantir que cada multa se transformasse em mais segurança nas ruas e estradas. Contudo, essa mesma estrutura é minada por uma cultura de opacidade que impede o controle social e alimenta a narrativa de uma “indústria da multa”. O problema não é a falta de uma lei federal, mas a gritante falta de compromisso em cumpri-la de forma transparente.
Na sua cidade, você consegue ver o dinheiro das multas sendo aplicado em melhorias? A falta de transparência sobre essa lei federal alimenta a desconfiança na fiscalização? Queremos saber sua experiência real. Deixe sua opinião nos comentários.