Erguida por Henry Ford em 1928 no meio da Amazônia, Fordlândia prometia ser a capital do futuro, mas acabou abandonada e engolida pela floresta.
No coração da floresta amazônica, cercada por rios caudalosos e vegetação densa, existem ruas largas, calçadas alinhadas e ruínas de prédios que parecem saídos de uma cidade norte-americana dos anos 1930. Casas de madeira, escolas, hospitais, clubes sociais e até um campo de golfe ainda resistem ao tempo — mas sem o som de motores, sem o movimento das pessoas e sem o brilho do sonho que lhe deu origem. Esse lugar existe, e seu nome é Fordlândia, um dos projetos urbanos mais ambiciosos e frustrados da história moderna.
Criada em 1928 pelo magnata Henry Ford, fundador da Ford Motor Company, a cidade foi idealizada para ser o coração da produção de borracha da empresa, garantindo autonomia ao império automotivo e libertando-o do controle britânico sobre as colônias produtoras na Ásia. A ideia era ousada: construir, no meio da Amazônia, uma cidade americana autossuficiente, com casas padronizadas, ruas pavimentadas, escolas, igrejas e até cinema.
Mas o que começou como símbolo do progresso virou, poucas décadas depois, uma das maiores utopias fracassadas da indústria moderna.
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O sonho de Henry Ford no meio da selva brasileira
Na década de 1920, a borracha era um insumo essencial para a indústria automobilística mundial. O problema é que as principais plantações estavam sob domínio britânico no sudeste asiático, o que tornava os preços voláteis e o fornecimento incerto. Em busca de independência, Henry Ford firmou um acordo com o governo brasileiro para explorar uma área de 10 mil quilômetros quadrados às margens do rio Tapajós, no oeste do Pará.
A Ford Motor Company investiu cerca de US$ 20 milhões na época (valor equivalente a mais de US$ 300 milhões atuais) para erguer a cidade. Navios partiram de Michigan carregando tratores, telhas, pregos, postes de luz, máquinas, e até casas pré-fabricadas desmontadas. O projeto prometia empregar milhares de brasileiros, introduzir tecnologia moderna e transformar a floresta em um polo agroindustrial de borracha.
O empreendimento foi batizado de Fordlândia, uma mistura do nome do magnata com a ideia de um “novo mundo” americano no coração da Amazônia.
Uma cidade americana em pleno Brasil tropical
Em pouco tempo, a paisagem amazônica começou a se transformar. As ruas foram traçadas em formato reticulado, com nomes como Michigan Avenue e Ford Street. As casas seguiam o modelo suburbano americano — pequenas, de madeira, com varandas e jardins. A cidade ganhou escola, hospital, armazém, clube, cinema, padaria e até uma estação de rádio.
Mas o choque cultural foi imediato. Henry Ford impôs aos trabalhadores um rígido código de conduta moral e alimentar. O álcool era proibido, o trabalho seguia o padrão industrial americano e as refeições, baseadas em carne enlatada e aveia, contrastavam com os hábitos locais. Em pouco tempo, os operários brasileiros se revoltaram. Em 1930, uma rebelião conhecida como o “motim da cantina” levou os gerentes americanos a fugirem em barcos pelo rio Tapajós.
O erro biológico que selou o destino da Fordlândia
Se o conflito cultural era um problema, o desastre biológico foi ainda pior. As plantações de seringueiras, base da produção de borracha, foram organizadas em fileiras compactas — uma prática comum nos Estados Unidos, mas desastrosa na Amazônia. A densa umidade e a presença de fungos devastaram as árvores. O botânico James Dempsey, contratado pela própria Ford, alertou em relatórios da época:
“A monocultura em ambiente tropical é insustentável. A seringueira precisa da diversidade da floresta para sobreviver.”
Em poucos anos, a praga do Microcyclus ulei, conhecida como “mal-das-folhas”, destruiu as plantações e inviabilizou a produção. O sonho industrial virou uma ruína precoce.
A transferência e o fim do projeto
Após anos de prejuízo e tentativas de adaptação, a Ford Motor Company decidiu transferir o projeto para uma nova área mais próxima de Belterra, onde as condições climáticas eram ligeiramente melhores. Mesmo assim, o insucesso persistiu.
Em 1945, após quase duas décadas de tentativas frustradas, a empresa abandonou definitivamente Fordlândia e devolveu as terras ao governo brasileiro. Dos milhares de trabalhadores, poucos permaneceram. A selva retomou o espaço, e o que restou da cidade passou a ser engolido pela vegetação.
O que sobrou da cidade do futuro
Hoje, quase um século depois, Fordlândia ainda existe — mas como uma sombra do que pretendia ser. As ruínas das casas de madeira, o hospital, a usina elétrica e a antiga caixa d’água com o logotipo da Ford ainda se erguem em meio ao verde. Algumas famílias continuam vivendo ali, somando cerca de 3 mil habitantes, segundo dados do IBGE (2022).
Eles vivem da pesca, da agricultura e, em parte, do turismo histórico. Visitantes chegam por barco, vindos de Santarém, para ver de perto o que sobrou do sonho de Henry Ford. A antiga serraria, as caldeiras enferrujadas e o refeitório abandonado lembram um capítulo da história em que a ambição industrial tentou domar a floresta — e falhou.
Fordlândia e o símbolo da utopia industrial
Pesquisadores da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) e do Smithsonian Institute estudam Fordlândia como um caso emblemático de “colonização industrial”. Segundo o antropólogo Greg Grandin, autor do livro Fordlândia: The Rise and Fall of Henry Ford’s Forgotten Jungle City, o fracasso foi mais que econômico — foi cultural e ambiental:
“Ford acreditava que podia recriar o modelo americano de trabalho e moralidade em qualquer lugar. Mas a Amazônia não se curva a engenheiros, ela obedece às próprias leis.”
A cidade se tornou um símbolo mundial da arrogância tecnológica e da limitação humana diante da natureza. Em 2017, o governo do Pará iniciou projetos para preservar o local como patrimônio histórico e rota de turismo sustentável, e há discussões para seu tombamento pelo IPHAN.
Um monumento ao que poderia ter sido
Fordlândia continua a intrigar historiadores, urbanistas e viajantes. É uma cidade que nasceu com a promessa de ser o “modelo do futuro” e acabou como um lembrete silencioso de que o progresso, quando ignora o ambiente e a cultura local, se transforma em ruína.
Entre os ecos das fábricas vazias e o som dos pássaros amazônicos, a cidade mantém um ar de melancolia e fascínio — uma utopia que desmoronou, mas nunca desapareceu.


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