Enquanto sanções e criptos fazem barulho, China e Rússia avançam no silêncio: comércio bilateral em yuan e rublo dispara, expõe perda de terreno do dólar e sinaliza reconfiguração monetária dentro do BRICS
O cenário financeiro internacional vem sendo sacudido por crises sucessivas, sanções econômicas impostas pelo Ocidente e o surgimento das criptomoedas como alternativas ao sistema tradicional. Mas, longe dos holofotes, uma transformação silenciosa vem ocorrendo entre duas potências estratégicas: China e Rússia. Nos últimos dois anos, o comércio bilateral entre os dois países passou a ser realizado majoritariamente em yuan e rublo, reduzindo drasticamente o papel do dólar nas transações.
Esse movimento não é apenas uma manobra econômica, mas parte de uma engrenagem maior que pode redefinir o futuro do BRICS e colocar em xeque a hegemonia americana sobre o sistema monetário global.
Comércio em moedas locais dispara e muda o jogo
De acordo com dados oficiais divulgados pelo Banco Central da Rússia e pelo Ministério do Comércio da China, cerca de 90% das transações comerciais bilaterais já são realizadas em moedas locais. Em 2021, o dólar ainda representava quase metade dos pagamentos entre Moscou e Pequim.
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Em 2025, essa participação caiu a níveis mínimos, substituída por um arranjo que privilegia o yuan, reforçado pela política chinesa de internacionalizar sua moeda, e pelo rublo, como resposta russa às sanções ocidentais após a guerra na Ucrânia.
Esse avanço é expressivo não apenas em valores, mas em setores estratégicos. Energia, petróleo e gás natural, além de produtos de alta tecnologia e commodities agrícolas, estão cada vez mais sendo liquidados sem a necessidade de passar pelo sistema financeiro americano.
Para Moscou, a mudança é questão de sobrevivência. Para Pequim, é um passo calculado rumo à criação de um sistema paralelo, menos vulnerável ao poder de Washington.
As sanções como catalisador da mudança
O estopim para essa virada foi a escalada de sanções impostas pelos EUA e pela União Europeia contra a Rússia após a invasão da Ucrânia em 2022.
O bloqueio de reservas internacionais, a exclusão de bancos russos do sistema SWIFT e a pressão sobre grandes empresas empurraram Moscou a buscar alternativas.
Pequim se apresentou como o parceiro ideal: já vinha estruturando o CIPS (Cross-Border Interbank Payment System), um sistema de pagamentos transfronteiriços que funciona como alternativa ao SWIFT, além de expandir a aceitação internacional do yuan.
Assim, enquanto a narrativa global se concentrava no “boom” das criptomoedas como refúgio, Rússia e China construíam, no silêncio dos bastidores, uma teia de transações em moedas locais. O resultado foi um salto de mais de 60% no uso do yuan em transações internacionais da Rússia em apenas dois anos, consolidando a moeda chinesa como segunda mais usada no país, atrás apenas do rublo.
Impacto direto na hegemonia do dólar
O dólar ainda é a principal moeda de reserva global, representando cerca de 58% das reservas internacionais no mundo, segundo o FMI. Mas a redução de sua participação nos fluxos entre China e Rússia traz sinais preocupantes para os EUA.
Afinal, a força do dólar não está apenas na economia americana, mas na confiança e no uso compulsório em transações internacionais. Quanto mais países e blocos abrirem mão de utilizá-lo, maior será a pressão sobre sua relevância.
Se em 2000 mais de 70% das reservas mundiais estavam em dólar, o recuo para níveis próximos de 58% em 2025 mostra uma tendência clara. Pequim e Moscou, juntas, movimentam centenas de bilhões de dólares anuais e agora criam um modelo a ser replicado por outros países que sofrem com sanções ou buscam reduzir a dependência dos EUA, como Irã, Turquia e parte dos membros do BRICS.
O papel estratégico do BRICS
Esse movimento não pode ser visto isoladamente. Ele se insere em um projeto mais amplo do BRICS de construir mecanismos financeiros alternativos, desde o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) até as discussões sobre uma eventual “moeda do bloco”.
Embora a criação de uma divisa única ainda seja um plano distante e cheio de obstáculos técnicos, a prática de usar moedas locais já é um avanço real e tangível.
Ao mesmo tempo, a integração entre yuan e rublo fortalece a ideia de um “BRICS Pay”, um sistema de pagamentos blindado contra sanções e fora do alcance direto de Washington. Isso não apenas aumenta a resiliência dos países membros, mas também atrai atenção de parceiros do Sul Global que enxergam no BRICS uma via de escape ao sistema dominado pelo Ocidente.
A reação dos Estados Unidos
O governo americano acompanha esse movimento com atenção redobrada. Analistas ligados ao Federal Reserve e ao Tesouro alertam que o aumento da liquidação em moedas locais pode reduzir a demanda global por dólares, pressionando a capacidade dos EUA de financiar seus déficits com facilidade. Além disso, a perda de influência em mercados-chave, como o de energia, compromete o chamado “petrodólar”, pilar da hegemonia americana desde os anos 1970.
Ainda assim, especialistas lembram que o dólar mantém vantagens estruturais difíceis de serem derrubadas: a profundidade do mercado financeiro dos EUA, a estabilidade de suas instituições e a confiança global na moeda.
O yuan, por outro lado, ainda sofre com barreiras como controles cambiais, falta de transparência e dependência de políticas do Partido Comunista Chinês.
Uma reconfiguração monetária em andamento
Mesmo com limitações, o que se observa é um processo gradual de reconfiguração monetária. Rússia e China mostraram que é possível reduzir a exposição ao dólar de forma prática, sem esperar pela criação de novas moedas ou pelo fortalecimento das criptos.
Essa experiência, se replicada, pode acelerar uma fragmentação no sistema financeiro internacional, criando blocos de influência regionais com moedas próprias.
Para investidores e governos, esse cenário exige atenção redobrada. O comércio global pode caminhar para um modelo multipolar, com o dólar ainda dominante, mas menos absoluto. Isso abre espaço para volatilidade, disputas cambiais e novas dinâmicas de poder, em que os países do BRICS terão papel central.