No Brasil, um fenômeno silencioso vem mudando a relação entre empresas e trabalhadores: a queda de interesse pela CLT. Enquanto setores tradicionais tentam contratar, a falta de mão de obra se espalha e já ameaça supermercados, padarias, siderúrgicas e até construtoras. Com milhares de vagas abertas e poucos interessados, o país assiste a um choque entre modelos de trabalho que coloca em xeque a estrutura do emprego formal.
O mercado de trabalho brasileiro passa por transformações profundas. Cada vez menos pessoas querem empregos formais regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), gerando uma enorme escassez de mão de obra em diversos estores da economia.
Esse movimento, impulsionado pela busca por flexibilidade e autonomia, coloca em xeque um modelo consolidado há décadas e já provoca efeitos em setores essenciais da economia.
Muitos trabalhadores passaram a preferir atividades autônomas, como motoristas e entregadores de aplicativo, que oferecem controle sobre a própria rotina.
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Para eles, a possibilidade de escolher horários compensa a falta de benefícios e segurança formal.
Essa mudança de mentalidade atinge principalmente os jovens, que demonstram pouco interesse por carreiras tradicionais e de longo prazo em empresas.
Os empresários, por outro lado, enfrentam dificuldades para contratar e reter funcionários. Em várias áreas, sobram vagas e faltam interessados. O resultado é aumento de custos, rotatividade elevada e, em muitos casos, necessidade de robotização.
A crise de mão de obra na construção civil
Um estudo intitulado “Panorama da Mão de Obra na Construção Brasileira”, realizado em abril de 2024 pela Grua Insights com 139 empresas, revelou um cenário preocupante.
Nos seis meses anteriores, 76% das construtoras precisaram rever prazos de obras devido à falta de trabalhadores.
Para tentar reduzir os impactos, 74% das companhias aumentaram salários e benefícios. Mesmo assim, a escassez persiste.
O Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil de São Paulo (Sintracon-SP) reforça o peso dessa situação.
Em 2024, os reajustes salariais ultrapassaram a inflação. Enquanto o normal seria cerca de 0,5% acima do índice oficial, o aumento chegou a 1,27%, somando-se ainda à correção do INPC de 3,18%.
O reflexo direto aparece nos canteiros de obra: cronogramas atrasados, custos inflacionados e risco de inviabilidade financeira em projetos de médio e grande porte.
O dilema do setor atacadista
A crise não se limita à construção. No atacado, empresários lidam com a dificuldade de encontrar e, principalmente, manter profissionais.
Segundo levantamento da FecomercioSP, a permanência média de trabalhadores caiu de 28 meses, em 2010, para 26 meses hoje.
Embora a diferença pareça pequena, em áreas como alimentos, bebidas, farmacêuticos e matérias-primas agrícolas, muitos empregados não chegam a completar dois anos na mesma empresa.
O presidente do Conselho do Comércio Atacadista (CCA), Ronaldo Taboada, resume: “O pleno emprego é uma conquista para o País, mas, para o empresário atacadista, tornou-se também uma batalha diária encontrar e reter bons profissionais. O capital humano virou o grande diferencial competitivo.”
Além disso, a participação dos jovens despencou. Em 2010, representavam 22% dos postos com carteira assinada no setor. Atualmente, esse número caiu para 17%.
Para as empresas, aumentar salários já não é suficiente. A FecomercioSP aponta que o mercado exige ambiente de trabalho saudável, planos de carreira claros e benefícios consistentes. Sem isso, a rotatividade seguirá corroendo margens e produtividade.
Diante desse quadro, a saída recomendada é investir em treinamento, tecnologia e políticas de valorização, além de programas específicos para atrair jovens.
Supermercados, padarias e o déficit de trabalhadores
O problema também aparece com força no comércio. Uma reportagem do SBT Brasil revelou que 58% dos empresários do varejo e de serviços enfrentam dificuldades para preencher vagas. Na construção civil e na indústria, o índice sobe para 60%.
Os números impressionam. Supermercados estimam déficit de 350 mil trabalhadores, o que se reflete em filas nos caixas e queda na qualidade do atendimento. Padarias e confeitarias também sofrem, com falta superior a 100 mil profissionais.
Flexibilidade no lugar da carteira assinada
A preferência por autonomia se tornou evidente. A reportagem destacou a história de José Luiz, motorista de aplicativo há nove anos. Após perder o emprego formal, ele não conseguiu outra vaga com salário equivalente e decidiu dirigir.
“Eu gosto do horário que eu faço. Antes tinha que trabalhar em dois empregos para tentar chegar no ideal”, disse.
Esse exemplo representa milhares de brasileiros que optaram pela informalidade tecnológica. O sentimento de independência supera a estabilidade da CLT.
Robôs como resposta à escassez
Com vagas em aberto e poucos interessados, muitas empresas têm recorrido à automação.
Uma rede de padarias em São Paulo abriu 30 vagas, mas não conseguiu preencher nenhuma, mesmo oferecendo salários acima da média. A solução foi apostar em robôs. Atualmente, três unidades já trabalham no atendimento, entregando pratos e transportando copos.
Situação semelhante ocorreu em uma siderúrgica do interior paulista. Sem conseguir contratar 70 funcionários para períodos de alta produção, a empresa robotizou parte da linha. O diretor foi direto: não foi uma escolha, mas uma necessidade.
O choque entre gerações e modelos de trabalho
As novas gerações mostram pouco interesse por empregos tradicionais. A busca por flexibilidade, remuneração rápida e autonomia contrasta com a rigidez da CLT.
Esse choque entre as necessidades das empresas e as expectativas dos trabalhadores explica por que milhares de vagas seguem abertas. De um lado, empresários falam em custos e produtividade. Do outro, trabalhadores falam em liberdade e qualidade de vida.
Caminhos possíveis e futuro da CLT
As entidades setoriais defendem três estratégias principais para combater a escassez de trabalhadores:
- formar profissionais dentro das empresas;
- investir em planos de carreira reais;
- adotar políticas de valorização e benefícios.
Apesar disso, muitas companhias ainda não aplicam essas medidas. O risco é que a dependência da mão de obra formal continue caindo, enquanto a robotização avança.
O debate vai além de estatísticas. A CLT enfrenta concorrência direta da informalidade tecnológica. Motoristas de aplicativo, entregadores e autônomos crescem em número, enquanto supermercados, padarias, indústrias e atacadistas não conseguem preencher vagas.
O Brasil está diante de um dilema histórico: adaptar a CLT às novas exigências ou conviver com um mercado dividido entre liberdade e vínculos formais.
Por enquanto, a balança pende para o lado da autonomia. E o resultado é um país com milhares de postos de trabalho formais em aberto, mas cada vez menos pessoas dispostas a ocupá-los.