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Bombas atômicas, bilhões e rios desviados: o ousado projeto soviético dos anos 1970 que fracassou, mas segue em debate até hoje

Publicado em 19/08/2025 às 21:28
Lago Nuclear, União Soviétiva, Bombas
Foto: Andrei Fadeev / BBC
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Explosões nucleares criaram o Lago Nuclear em 1971; décadas depois, ele simboliza ambição soviética, riscos ambientais e debates que ainda ressurgem na Rússia

A oeste dos Montes Urais, na Rússia, encontra-se o Lago Nuclear. O acesso é difícil. Para chegar até ele, os visitantes precisam viajar de barco pelos rios Kolva e Visherka, partindo da cidade de Nyrob, conhecida por ter sido local de exílio de opositores dos czares.

O lago mede cerca de 690 metros em seu ponto mais amplo. Não se conecta diretamente às dezenas de rios próximos, e o trecho final da viagem exige caminhar por uma trilha pantanosa. Nas margens, placas de metal enferrujadas alertam: trata-se de uma “zona de perigo de radiação”.

Em 2024, o blogueiro russo Andrei Fadeev visitou o local. Ele descreveu a água como transparente e a paisagem como calma.

Apesar disso, seu dosímetro registrou pontos com radiação acima do normal. “Não havia uma atmosfera de ameaça“, afirmou. Para ele, a floresta boreal parece ter retomado o lugar.

Explosões para escavar canais

O Lago Nuclear surgiu em 23 de fevereiro de 1971. Naquele dia, a União Soviética detonou três dispositivos nucleares enterrados a 127 metros de profundidade.

Cada explosivo tinha potência de 15 quilotoneladas, equivalente à bomba lançada sobre Hiroshima em 1945.

A operação recebeu o nome de “Taiga”. Integrava o programa soviético de Explosões Nucleares Pacíficas (ENP), uma iniciativa de duas décadas. O objetivo era abrir um canal ligando o Rio Pechora ao Rio Kama, afluente do Volga.

Se concluído, o projeto teria desviado grande volume de água para o sul da Rússia e a Ásia Central, regiões quentes e densamente povoadas.

Era parte de uma série de “inversões fluviais” que buscavam alterar o curso das grandes bacias russas e siberianas.

Impactos imediatos e protestos externos

Leonid Volkov, cientista envolvido no projeto, descreveu a cena da detonação como impressionante, com jatos de terra e água sendo arremessados ao ar.

Moscou tentou minimizar a chuva radioativa, usando explosivos de baixa fissão. Ainda assim, a radiação foi detectada em países como Estados Unidos e Suécia, que protestaram contra a violação do Tratado de Proibição Parcial de Testes Nucleares.

Megaprojeto soviético

Décadas depois, o lago se tornou uma atração turística discreta. Mas também um símbolo de um dos últimos megaprojetos soviéticos: a tentativa de inverter o fluxo dos rios.

A ideia não era nova. Já no século XIX, o escritor Igor Demchenko sugeria desviar rios para irrigar o sul da Rússia e melhorar o clima regional. Sob Stalin, nos anos 1930, os planejadores soviéticos também levantaram essa possibilidade.

Nos anos 1970, o projeto ganhou força. Milhões de rublos foram investidos. Cerca de 200 institutos e 68 mil pessoas se envolveram nos estudos.

Para os líderes soviéticos, transformar a natureza fazia parte da missão de construir o socialismo e competir com o Ocidente.

A agricultura era vista como estratégica. Irrigar áreas áridas poderia aumentar a produção e até salvar o Mar de Aral, devastado pelo uso excessivo de seus afluentes.

Planos ambiciosos

As propostas envolviam canais, represas e até explosões nucleares em série. Havia planos para um canal de 1.500 quilômetros, que desviaria até 10% das águas dos rios Ob e Irtysh para o Cazaquistão, Uzbequistão e Turcomenistão.

Uma resolução de 1975 previa a chegada da água à Ásia Central em 1985 e a conclusão do projeto até 2000. O empreendimento prometia também revitalizar os mares Cáspio e de Azov, cujos níveis vinham caindo.

Resistência crescente

Mas a ideia enfrentou resistência. No início dos anos 1980, cientistas, escritores e intelectuais iniciaram uma campanha contra o projeto.

Revistas publicaram artigos críticos, e até poemas ironizavam a pretensão de “torcer o pescoço dos rios”.

Entre os críticos estava o hidrólogo Sergei Zalygin, que alertava para custos altíssimos e riscos ambientais incontroláveis.

Estudos internos, segundo historiadores, minimizavam os impactos, mas a comunidade científica via consequências sérias: alteração do clima, destruição de habitats e até a transferência de espécies entre regiões.

O desastre de Chernobyl, em 1986, reforçou os temores. A catástrofe nuclear consumiu recursos e colocou a questão ambiental no centro das preocupações. Meses depois, o líder soviético Mikhail Gorbachev cancelou oficialmente a inversão dos rios.

O projeto não morreu

Apesar do cancelamento, a ideia continuou viva em setores do governo russo. Em 2008, o prefeito de Moscou, Yuri Luzhkov, publicou o livro Water and Peace, defendendo novamente o desvio das águas siberianas.

Mais recentemente, em 2025, cientistas russos voltaram a discutir o tema, argumentando que novas tecnologias tornaram o projeto mais viável.

Para eles, a proposta se alinha à “guinada para o leste” da Rússia após o rompimento com o Ocidente.

Alguns sugerem até que desviar rios poderia ajudar a mitigar o aquecimento global, reduzindo a quantidade de água quente que chega ao Ártico.

Outros especialistas, porém, alertam para o contrário: a mudança poderia acelerar o derretimento do gelo marinho.

Perspectivas futuras

Pesquisadores ocidentais avaliam que, mesmo sem apoio político imediato, a ideia pode voltar. A Rússia, afirmam, é um império de recursos e pode encontrar na China um parceiro interessado em receber água para suas regiões agrícolas.

Acadêmicos soviéticos já haviam previsto isso. Em 1991, Alexander Yanshin e Arkady Melua escreveram que a questão voltaria no terceiro milênio, pressionada pela demanda de água e crescimento populacional.

Um legado radioativo

O Lago Nuclear, criado pelas explosões de 1971, é um dos poucos vestígios físicos do projeto. Cientistas russos afirmaram em 2024 que os níveis de radiação estavam normais. Mas relatos de visitantes, como Fadeev, mostram pontos ainda com índices elevados.

Por isso, ele decidiu não entrar na água. “Não fui nadar“, disse.

Assim, o lago permanece como testemunho de uma época em que a União Soviética tentou dobrar a natureza às suas ambições, mas deixou como herança um cenário radioativo e uma ideia que insiste em ressurgir.

Com informações de BBC.

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Romário Pereira de Carvalho

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