A COP injeta bilhões e acelera intervenções em Belém, porém o balanço urbano expõe falhas de projeto, desigualdades na paisagem e carências básicas que a cidade precisa resolver para transformar investimento em legado real
Belém entrou no mapa global com a COP, atraindo cerca de 6 bilhões de reais em obras viabilizadas por BNDES, investimentos privados e aportes dos três níveis de governo. O volume impressiona, mas a pergunta permanece incômoda: quem será efetivamente beneficiado e como? Entre anúncios de “legado” e tapumes, o cotidiano revela buracos antigos da capital paraense, de calçadas inexistentes a ruas sem uma única árvore.
O debate não é contra a COP, e sim a favor de prioridades claras, projeto urbano qualificado e manutenção. Sem fiscalização e atenção aos detalhes, o custo explode e o benefício evapora. Belém tem oportunidades reais de virar vitrine de soluções amazônicas de madeira certificada a arquitetura tropical , mas precisa alinhar desenho, obra e operação ao que a cidade de fato demanda.
O que está em jogo com a COP e os 6 bilhões
A COP catalisou carteiras de obras e parcerias, somando aproximadamente 6 bilhões de reais entre recursos federais, estaduais, municipais e privados. A escala é inédita para a capital e poderia reorganizar mobilidade local, qualificar espaços públicos e reduzir déficits históricos de saneamento e drenagem.
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Mas verba volumosa não é sinônimo de bom projeto.
Sem critérios transparentes e cronogramas tecnicamente factíveis, o risco é entregar por pressa e refazer depois, gastando o dobro. Legado de verdade exige priorizar o básico: rede, drenagem, sombra, calçada, segurança do pedestre e conforto térmico.
Parque da Cidade: legado caro, verde escasso
O novo Parque da Cidade ocupa o antigo aeroporto (cerca de 500.000 m²). Houve concurso de arquitetura, marco importante, mas o projeto vencedor foi simplificado e barateado, embora a conta final siga alta.
Resultado: inauguração com alagamento, pista de skate que virou piscina e a sensação de que a drenagem subdimensionou o regime de chuvas do Pará.
Além disso, a vegetação ainda é rala. Belém não precisa de cenografia importada: a ideia de árvores artificiais “à la Singapura” foi abandonada, felizmente.
Falta reflorestamento robusto, com viveiros capazes de entregar mudas já fortalecidas, para acelerar sombra e microclima. Parque custa, manter custa mais e é nessa etapa que muitos legados morrem.
Saneamento e canalização: quem ganha sombra e quem não
A cidade corre para canalizar riachos e córregos que por décadas provocaram alagamentos nas baixadas. É avanço essencial, mas a execução revela desigualdade. Em áreas carentes, canalização com remoção de palafitas e quase nenhuma árvore. Em regiões mais ricas, parques lineares, verde e playground. O mesmo canal, paisagens opostas.
Esse contraste pesa num território onde 45% dos domicílios ficam em ruas sem árvores e 36% sem calçada, bueiro ou pavimento.
Não há legado climático sem sombra e não há cidade caminhável sem calçada contínua. O mínimo urbano precisa ser regra em toda a malha, não exceção onde a renda permite.
Obras apressadas, erros caros e o custo do “pós-obra”
A pressa cobra. O Mercado de Carnes do Ver-o-Peso teve trecho entregue sem tomadas. O Mercado de São Brás, belíssimo, recebeu cozinhas subdimensionadas.
Detalhe que parece pequeno vira operação quebrada e aditivos de contrato. Sem lupa técnica e fiscalização independente, a cidade paga hoje e paga de novo amanhã.
Arquitetura não atua sozinha. É cadeia: projetistas, construtoras, terceirizadas, secretarias, fiscalização e política. Quando uma etapa falha, o conjunto desaba. Belém precisa institucionalizar o “comissionamento urbano”: testar, checar, corrigir antes de inaugurar e planejar manutenção desde o primeiro minuto.
Avanços que valem nota: esgoto no Ver-o-Peso, São Brás e moradia em madeira
Há boas notícias. O Ver-o-Peso maior feira livre das Américas vai finalmente receber rede de esgoto, mudança estrutural e civilizatória. O retrofit do Mercado de São Brás reposiciona um ícone, com até 50 operações gastronômicas e potencial para ativar a economia local. Requalificar patrimônio é também reativar emprego e cultura.
Outra frente promissora: o Minha Casa, Minha Vida inicia habitação em madeira produzida numa ilha de Belém. Industrialização leve, baixa pegada e rapidez de obra dialogam melhor com o clima amazônico do que o “copiar e colar” de alvenaria. Se der certo, Belém pode pautar o Brasil em moradia social adequada ao bioma.
Do cacau à palhinha: quando a identidade vira projeto
O cacau paraense ganhou valor agregado com nomes premiados como Fábio Cecília, prova de que cadeias locais podem competir no mundo. Arquitetura pode aprender com essa virada: mapear insumos, processos e ofícios amazônicos e transformá-los em soluções contemporâneas.
O Teatro da Paz já ensinava conforto antes do ar-condicionado: cadeiras de palhinha, ornamentos com cultura local — cariátides indígenas, sapos, vitórias-régias e senso climático que evita “grudar no veludo”. Conforto térmico é linguagem de projeto, não só equipamento plugado na tomada.
Dois eixos estratégicos para um legado de verdade
Madeira certificada: o mundo pesquisa mass timber; Belém precisa liderar, não assistir. Prédios, escolas, pavilhões e habitação com engenharia de madeira podem reduzir CO₂, acelerar obra e abrir cadeia produtiva local, da floresta manejada à indústria e ao design.
Arquitetura tropical: de Sevilha ao Vietnã, avança o projeto bioclimático que sombra, ventila, resfria, drena e usa menos ar-condicionado.
Pesquisa, saberes ribeirinhos e produção local
Iniciativas da sociedade civil já acontecem. O escritório Guá criou um instituto que aproxima designers do eixo Rio–São Paulo e carpinteiros ribeirinhos.
Essa ponte é estratégica: qualifica produto, fixa renda local e eleva a cultura material amazônica do protótipo para a escala.
Mas é preciso compras públicas inteligentes. Se o poder público não contrata, a cadeia não escala. Editais que peçam madeira certificada, exijam desempenho térmico e pontuem soluções de baixo carbono mudam a vitrine e o mercado acompanha. Legado também se faz na licitação.
O que a COP deve deixar em Belém
A COP trouxe visibilidade e dinheiro. Falta transformar ambos em cidade: calçada contínua, drenagem que funcione, árvore em cada rua, projeto que respeite a chuva amazônica e equipamentos públicos operacionais. Sem isso, o legado vira marketing.
Belém tem chance rara de liderar a modernidade que nasce da floresta, com madeira certificada, arquitetura tropical, patrimônio vivo e produção local. Se o plano urbano colocar o básico na frente e a identidade no centro, a cidade não só recebe a COP — ela ensina o mundo.
Você concorda que o legado da COP só será real com calçada, sombra e drenagem para todos os bairros, não só para os cartões-postais? Que prioridade não pode faltar agora em Belém: árvore, calçada ou drenagem — e por quê?



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