Disputa comercial pela soja expõe dependência chinesa, desafia liderança brasileira no fornecimento e amplia impacto da demanda por carnes em um mercado bilionário até 2030.
A Casa Branca elevou a aposta na disputa por fornecimento de soja à China.
Em agosto, o presidente Donald Trump prorrogou por 90 dias a trégua tarifária com Pequim e, em paralelo, cobrou publicamente que os chineses quadruplicem as compras de soja dos EUA, sinalizando que concessões comerciais devem vir acompanhadas de volumes adicionais de grãos.
O movimento mira um mercado de importação de cerca de 105 milhões de toneladas anuais e coloca pressão direta sobre o Brasil, hoje principal fornecedor da oleaginosa ao país asiático.
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Pressão dos EUA e espaço de manobra da China
A extensão da trégua evitou um salto imediato de tarifas e manteve as negociações vivas, mas não resolveu o ponto central: compras adicionais de produtos agrícolas norte-americanos, com a soja no topo da lista.
Em suas mensagens, Trump atrelou o relaxamento temporário das tarifas a um aumento substancial de pedidos chineses, tentativa de reabrir, em escala, a janela de exportação dos EUA.
A leitura em Pequim, porém, considera preço, câmbio, logística e risco geopolítico — fatores que, desde a guerra comercial iniciada em 2018, favoreceram a diversificação de origens e consolidaram o Brasil como fornecedor dominante.
Brasil em vantagem no embarque de 2025
Enquanto Washington tenta reconquistar espaço, os dados do ano reforçam a posição brasileira.
Entre janeiro e julho de 2025, o Brasil exportou 77,2 milhões de toneladas de soja, marca recorde para o período. Julho sozinho somou 12,25 milhões de toneladas, também recorde para o mês.
A maior parte seguiu para a China, mantendo o fluxo que se intensificou com os preços competitivos e a oferta robusta do país. Esse protagonismo não surgiu por acaso.
Em 2024, 71% das importações chinesas de soja tiveram origem no Brasil, segundo relatório do serviço agrícola do governo dos EUA (USDA).
A fatia elevada dá ao produto brasileiro um papel de referência no esmagamento chinês e nas fórmulas de ração, inclusive quando compradores em Pequim revezam origens para barganhar preço.
Por que a China precisa de tanta soja
O pano de fundo é a expansão do consumo de proteína animal. A China vem aprofundando a demanda por carne e derivados, sustentada por renda urbana e mudança de hábitos.
Projeções de consultorias apontam que o mercado de carnes no país pode atingir US$ 258,17 bilhões em 2030, partindo de US$ 83,68 bilhões em 2024, em linha com uma taxa composta de crescimento estimada em 20,72% no período.
Ainda que projeções de mercado variem conforme a metodologia, a direção é inequívoca: proteína no centro da dieta e da indústria alimentícia chinesa.
A engrenagem da proteína: suínos no comando
Na oferta, a China retomou e ampliou a produção após a crise da peste suína africana.
Em 2023, o país registrou 57,94 milhões de toneladas de carne suína, e a soma de pork, beef, mutton e poultry alcançou 96,41 milhões de toneladas, segundo a agência estatística chinesa.
A recomposição do plantel veio acompanhada de industrialização acelerada, modernização de granjas e ganhos de escala.
Estudos acadêmicos estimam que os surtos de peste suína africana representaram impacto econômico de 0,78% do PIB em 2019, o que ajuda a explicar o apetite por eficiência e biossegurança no setor.
Esse ciclo produtivo puxa a soja por um elo específico da cadeia: o farelo, base proteica da ração de suínos e aves.
Como a produção doméstica chinesa de soja cobre apenas uma fração da necessidade de esmagamento, a complementação via importações torna-se estrutural.
Daí a sensibilidade de Pequim a preços internacionais, câmbio e frete — e o interesse de produtores no Brasil e nos EUA em cada janela sazonal.
O elo vulnerável: dependência de importações
Apesar de políticas para elevar a área plantada e reduzir o teor de farelo nas dietas, a China segue importando mais de 100 milhões de toneladas de soja por ano.
No agregado, o país concentra a maior parcela das compras globais do grão e dita a dinâmica de prêmios, escalas de embarque e taxa de utilização das indústrias de esmagamento.
A leitura de mercado é direta: uma mudança de origem ou de ritmo nas compras chinesas redistribui renda entre produtores e exportadores em todo o mundo.
Por outro lado, a concentração de origem também é um risco para Pequim.
O avanço brasileiro — sustentado por produtividade, câmbio e logística que evolui com novos terminais e corredores de escoamento — é acompanhado por gargalos pontuais e por um debate ambiental cada vez mais presente nos grandes compradores.
Ainda assim, enquanto durar a vantagem de preço e disponibilidade, a preferência tende a se manter.
O tabuleiro geopolítico do grão
Nesse cenário, a investida de Washington para quadruplicar as compras chinesas de soja dos EUA é ambiciosa.
Para prosperar, dependerá não só de decisões políticas, mas de variáveis comerciais como tarifas efetivas, diferencial de preço FOB, prêmios nos portos, qualidade e timing da safra norte-americana.
A prorrogação da trégua tarifária abre uma janela para contratos, mas não neutraliza o fato de que a China já consolidou o Brasil como fornecedor preferencial nos últimos anos.
Em 2025, inclusive, compradores chineses garantiram volumes sul-americanos para meses em que tradicionalmente os EUA lideravam as vendas, o que pressiona os embarques norte-americanos na chamada “janela de outono”.
Enquanto isso, o Brasil amplia embarques e reforça a sua posição.
Para os produtores brasileiros, a mensagem é pragmática: seguir competitivo em custo e logística mantém a preferência chinesa.
Para os EUA, recuperar relevância exigirá previsibilidade regulatória, câmbio favorável e, sobretudo, preços que compensem eventuais tarifas.
No fim, quem dita a direção são as granjas e frigoríficos chineses, em busca de ração mais barata para sustentar um mercado doméstico de proteína que segue em expansão.