Quase um século depois, o pioneirismo brasileiro ainda impressiona: a ousadia de um time de futebol que enfrentou clima, limitações técnicas e medo para realizar a primeira viagem de avião esportiva registrada na história mundial.
Há 98 anos, em uma manhã fria e chuvosa de domingo, 5 de junho de 1927, uma cena histórica tomou forma às margens do Rio Guaíba, na Ilha Grande dos Marinheiros. Foi a primeira vez que um time de futebol conseguiu viajar de avião.
O Esporte Clube São José, tradicional clube de Porto Alegre, embarcava no hidroavião Dornier Do J Wal “Atlântico”, da Varig, para enfrentar o Esporte Clube Pelotas em um amistoso.
Eles não sabiam, naquele instante, que fariam algo que jamais havia sido feito no mundo: uma delegação de futebol viajar de avião para disputar uma partida.
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O feito só ganharia reconhecimento oficial décadas depois, quando, em 1992, a FIFA confirmou o pioneirismo e registrou o acontecimento em seus arquivos. Porém, muito antes das homenagens, aquela viagem já simbolizava ousadia, inovação e um espírito de aventura absolutamente fora do comum para a época.
O voo durou duas horas e meia entre Porto Alegre e Pelotas.
A logística seguiu o padrão da Varig, que realizava seus embarques no Guaíba, onde o hidroavião taxiava sobre a água antes de decolar. Mas aquela manhã seria tudo, menos um voo rotineiro.

A preocupação antes da decolagem e o desafio do peso
O comandante Rudolf Cramer von Clausbruch demonstrou preocupação ao avaliar as condições meteorológicas. Chovia, fazia frio e a aeronave apresentava risco de excesso de peso.
Dias antes, a Varig havia pedido ao São José o peso exato de cada passageiro. Porém, o clima gelado obrigou todos a vestir pesados casacos de lã, elevando a carga total acima do previsto.
Como o Dornier Do J Wal comportava apenas nove passageiros, surgia um impasse. A solução encontrada seria quase impensável hoje: o goleiro Alberto Moreira Haanzel, o “Bagre”, e Antônio Pedro Netto viajaram no compartimento de bagagens.
Com eles acomodados de maneira improvisada, o voo pôde finalmente decolar. Na cabine, os demais passageiros se distribuíram pelas poltronas de vime.
Para amenizar o barulho ensurdecedor dos motores, a tripulação entregou pedaços de algodão para que protegessem os ouvidos. Viajaram ali os jogadores Álvaro Kessler, Dirceu Silva, Alfredo Cezaro (Pinho), César Cezaro, João Nicanor Leite (Nona), Clóvis Carneiro Cunha e Walter Raabe, além do chefe da delegação, Carlos Albino Müller Pires, e o secretário do clube, Moisés Antunes da Cunha.
O presidente do clube, Waldemar Zapp, pediu que um fotógrafo registrasse o grupo ao lado da aeronave antes da decolagem.
Não era apenas um gesto comemorativo: Zapp temia que algo desse errado nessa viagem de avião. Caso acontecesse uma tragédia, a imagem garantiria ao menos um último registro da delegação.
Na foto, uma curiosidade chama atenção. Antônio Pedro Netto aparece com um fardo entre as pernas contendo 30 exemplares do jornal Correio do Povo.
Como os jornais de sábado só chegavam a Pelotas na quarta-feira, ele viu ali uma oportunidade. Levou-os de avião e vendeu tudo no domingo, garantindo renda suficiente para pagar o jantar após a partida.

O hidroavião pioneiro: o Dornier Do J Wal
Para entender a importância daquele voo, é preciso entender também o avião que tornou tudo possível.
O Dornier Do J Wal (“Wal”, em alemão, significa “baleia”) é um dos mais icônicos hidroaviões da história da aviação. Projetado pela Dornier Flugzeugwerke, ele entrou em operação na década de 1920 e rapidamente se tornou um símbolo da aviação marítima mundial.
O modelo possuía um casco totalmente metálico e utilizava flutuadores laterais integrados, chamados sponsons, que aumentavam a estabilidade na água. Sua configuração de asa alta tipo parasol facilitava os pousos e decolagens no mar, rios ou lagoas.
Um dos elementos mais marcantes do Wal era o conjunto de motores montados sobre a asa em uma nacela dupla, configurados em push-pull – um motor à frente tracionando e outro atrás empurrando. Esse arranjo inovador reduzia vibrações, melhorava a estabilidade e tornava o hidroavião mais eficiente em longas distâncias.
O Dornier Do J Wal não era apenas robusto: ele era versátil. Servia tanto para operações civis — como transporte de passageiros e correio aéreo – quanto para fins militares, patrulha marítima e exploração.
Seu histórico impressiona:
- mais de 250 unidades produzidas;
- versões civis e militares operando em diversos continentes;
- participação em expedições, como a do explorador Roald Amundsen ao Ártico em 1925;
- uso em travessias do Atlântico Sul pela Deutsche Lufthansa;
- confiabilidade elevada, com apenas um grande acidente registrado em centenas de voos oceânicos.
O voo costumava ocorrer a apenas 20 a 50 metros acima da água, mantendo velocidade aproximada de 160 km/h. A travessia entre Porto Alegre e Pelotas levava cerca de duas horas, enquanto o trecho entre Pelotas e Rio Grande durava em média 20 minutos.
Ele operou na VARIG até 2 de julho de 1930, quando foi transferido para o Syndicato Condor Ltda. Em 1933, já no Rio de Janeiro, a aeronave foi desmontada e suas peças acabaram vendidas como sucata.

A viagem paralela e o amistoso em Pelotas
Antes da delegação que viajou de avião, o tesoureiro João Leal da Silva embarcou dois dias antes rumo a Pelotas, viajando de vapor.
Acompanhavam-no os jogadores Odorico Monteiro, Benedito e Walter Kennemann (Berlina). Eles foram responsáveis por organizar detalhes da partida e da hospedagem.
O amistoso terminou empatado em 2 a 2. Mas, como a própria história mostra, esse placar nunca foi o elemento relevante da viagem. O momento que realmente ficou gravado para sempre foi a travessia aérea.
Após o jogo, Leal da Silva e os três jogadores retornaram a Porto Alegre no mesmo Dornier Do J Wal, ocupando os lugares de outros quatro passageiros que voltaram de vapor.
O outro elo histórico entre o clube e a aviação
A ligação entre o Esporte Clube São José e o mundo da aviação não para por aí. O terreno onde hoje se encontra o estádio do clube, na Avenida Assis Brasil, 1200, pertencia a Rubem Berta – figura histórica da Varig.
Berta pretendia construir ali uma pista de pouso, mas o avanço urbano tornou o projeto inviável. Como consequência, decidiu vender o terreno. Em 1939, o São José adquiriu a área por um valor abaixo do mercado. No ano seguinte, em 24 de maio de 1940, inaugurou oficialmente o Estádio Passo D’Areia, ainda hoje a casa do clube.
Assim, duas histórias paralelas se cruzam: a da primeira viagem aérea de uma delegação de futebol e a origem do estádio do São José – ambas conectadas à história da aviação brasileira.
Um capítulo eterno do esporte e da aviação
O voo de 1927 não foi apenas ousado. Ele representou uma ruptura com os limites da época. Era o casamento entre o futebol, que ganhava popularidade no Brasil, e a aviação, que engatinhava como tecnologia de transporte.
O Esporte Clube São José entrou para a história mundial não apenas pelo jogo que disputou, mas pelo caminho que escolheu para chegar até ele. E o Dornier Do J Wal, com sua imponência metálica e engenharia avançada, foi a máquina que tornou o impossível possível.
O placar daquele amistoso se perdeu no tempo. Mas a imagem do hidroavião erguendo voo sobre o Guaíba, levando um time de futebol rumo ao ineditismo, permanece como uma das histórias mais extraordinárias do esporte brasileiro – e uma das mais fascinantes da aviação no país.



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