Santa Catarina entra para o mapa mundial da inovação energética com a primeira microrrede brasileira que integra energia solar e hidrogênio verde, desenvolvida pela Celesc e o Parque Tecnológico de Itaipu. Projeto marca um passo decisivo na transição energética do país.
Em um momento em que o mundo inteiro busca alternativas sustentáveis para substituir os combustíveis fósseis, Santa Catarina se destaca com um projeto inédito e promissor. A Celesc, em parceria com o Parque Tecnológico de Itaipu (PTI), desenvolve a primeira microrrede do Brasil capaz de integrar energia solar e hidrogênio verde por meio de automação inteligente — uma inovação que coloca o estado no centro da transição energética nacional.
O projeto, iniciado em agosto de 2023, já atingiu 78% de execução em outubro de 2025 e deve iniciar sua operação piloto em janeiro de 2026. Com investimento de R$ 9,25 milhões, a iniciativa combina geração solar, armazenamento em baterias e eletrólise da água para criar um sistema autônomo, estável e totalmente limpo.
Segundo Júlio Normey, coordenador do Laboratório Multiusuário de Hidrogênio Verde da UFSC, o conceito de microrrede revoluciona a forma como a energia é gerada e distribuída:
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“A microrede é um conjunto de sistemas de geração, armazenamento e consumo de energia. Chamamos assim porque é uma rede de pequena escala, local, diferente das redes elétricas convencionais — como a da Celesc, que está conectada a todo o sistema nacional.”
Faxinal dos Guedes: o laboratório catarinense de energia limpa
A nova microrrede será instalada na Usina Hidrelétrica Celso Ramos, localizada em Faxinal dos Guedes, no Oeste catarinense — uma região com alta incidência solar e infraestrutura elétrica ideal para testes de inovação energética.
Os equipamentos, antes da instalação definitiva, estão sendo avaliados no Parque Tecnológico de Itaipu, no Paraná. Essa fase é essencial para ajustar a integração entre os componentes e garantir que o sistema opere de forma eficiente e autônoma.
De acordo com Igor Kursancew Khairalla, engenheiro elétrico da Celesc e coordenador do projeto, a escolha do local foi estratégica:
“Escolhemos Faxinal dos Guedes porque lá temos uma usina hidrelétrica da Celesc Geração e alta radiação solar, o que melhora o desempenho do sistema.”
O projeto, batizado de Gemai-H2V, representa uma fusão entre ciência, engenharia e sustentabilidade. Jonas Villela de Souza, engenheiro eletricista no Itaipu Parquetec e co-coordenador do programa, resume a essência da iniciativa:
“Assim como na usina de Celso Ramos, em Faxinal dos Guedes (SC), a energia utilizada nesse processo é 100% renovável, o que caracteriza o produto como hidrogênio verde. Esse é o conceito do GEMAI: um sistema inteligente e autônomo, capaz de gerar, armazenar e reutilizar energia limpa de forma eficiente, promovendo o avanço da transição energética no Brasil.”
Hidrogênio verde: o combustível do futuro e a aposta global da descarbonização
O hidrogênio verde surge como um dos pilares da transição energética global. Ele é produzido por eletrólise da água, processo que separa hidrogênio (H₂) e oxigênio (O₂) usando energia proveniente de fontes renováveis, como solar, eólica, hidrelétrica ou biomassa. O termo “verde” se refere à ausência total de emissões de carbono durante sua produção.
Segundo Helton Alves, diretor técnico da Associação Brasileira de Hidrogênio (ABH2), o hidrogênio pode ser obtido tanto por energia elétrica quanto por biomassa residual, aproveitando sobras agrícolas e industriais. Ele classifica as principais categorias de produção:
- Hidrogênio cinza: produzido a partir do gás natural, por reforma a vapor, liberando grandes quantidades de CO₂.
- Hidrogênio azul: utiliza o mesmo processo do cinza, mas com captura e armazenamento de carbono (CCUS), o que mitiga impactos ambientais.
- Hidrogênio verde: proveniente exclusivamente de fontes renováveis, sem emissão de gases poluentes.
Entre todas as variantes, o hidrogênio verde é o mais sustentável e promissor — justamente o que está sendo implementado em Santa Catarina.
Como o projeto catarinense transforma energia solar em hidrogênio limpo
Na microrrede Gemai-H2V, a energia solar captada pelos painéis fotovoltaicos alimenta um eletrolisador. Esse equipamento separa as moléculas de água (H₂O), gerando hidrogênio e oxigênio. O hidrogênio, depois de produzido, é armazenado sob pressão em cilindros e pode ser reconvertido em energia elétrica quando necessário.
De acordo com Daniel Cantane, gerente do Centro de Tecnologias de Hidrogênio do Itaipu Parquetec, o processo é fundamental para resolver um dos maiores desafios das energias renováveis: o armazenamento.
“Em sistemas de microrrede, as fontes de energia são intermitentes. Todo o excedente gerado pode ser armazenado em baterias ou hidrogênio para uso posterior, garantindo eficiência e estabilidade do sistema.”
Ao contrário das baterias, o hidrogênio permite armazenar energia por longos períodos sem perdas significativas. Júlio Normey, da UFSC, destaca essa vantagem:
“Você pode deixar um tanque cheio e, um ano depois, a energia continuará lá. Já uma bateria se descarrega nesse período. São tecnologias complementares: bateria para uso rápido, hidrogênio para armazenamento prolongado.”
Apesar das vantagens, a eficiência ainda é um desafio. Apenas cerca de 25% da energia usada na eletrólise retorna como eletricidade, o que torna os projetos de hidrogênio verde intensivos em investimento. Para Khairalla, no entanto, o valor estratégico supera o custo imediato:
“O objetivo é gerar conhecimento e preparar o país para quando a tecnologia se tornar economicamente viável.”
O “cérebro” do sistema: automação e inteligência artificial na gestão energética
Mais do que um projeto de geração, a inovação catarinense representa um salto tecnológico em automação energética. O diferencial da microrrede está na criação de um algoritmo inteligente — desenvolvido pela própria Celesc — capaz de gerenciar, em tempo real, o uso das fontes energéticas disponíveis.
“O hidrogênio verde em si já é conhecido, mas o nosso diferencial é o cérebro do sistema — o algoritmo que define qual fonte usar em cada momento”, explica Khairalla. “Ele garante qualidade e segurança no fornecimento de energia, trabalhando com as incertezas do clima e da demanda.”
Esse sistema de controle inteligente monitora fatores como radiação solar, nível de consumo, carga das baterias e estoque de hidrogênio. Com base nesses dados, o algoritmo decide automaticamente se deve utilizar energia solar, armazenar energia em forma de hidrogênio ou recorrer às baterias.
Villela, do Itaipu Parquetec, detalha:
“O GEMAI funciona como o ‘cérebro’ de uma microrrede, que é uma pequena rede elétrica independente, capaz de gerar, armazenar e distribuir sua própria energia.”
A automação não apenas aumenta a eficiência energética, mas também torna o sistema replicável em qualquer região do Brasil, adaptando-se a diferentes matrizes — solar, eólica ou hídrica.
Microrredes inteligentes: tendência global e nova fronteira da transição energética
A integração entre automação e hidrogênio verde já é uma tendência consolidada em países como Suíça, Alemanha, Índia e Japão. Nessas regiões, plantas automatizadas utilizam sensores e softwares de inteligência artificial para otimizar a produção e o armazenamento de energia.
No Brasil, projetos semelhantes começam a despontar. Além do Gemai-H2V, há iniciativas como o MIRAHV, desenvolvido pela Norte Energia na Usina Hidrelétrica Pimental (PA), e o hub de hidrogênio verde no Porto do Pecém (CE), voltado à exportação para a Europa.
Segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), já existem mais de 30 projetos de hidrogênio verde em andamento no país — embora poucos integrem automação de forma tão avançada quanto o modelo catarinense.
“Mas não basta ter os equipamentos. É preciso que o sistema tenha uma gestão inteligente da energia — ou seja, saber em que momento carregar e descarregar as baterias, quando produzir ou utilizar o hidrogênio. Se essa gestão for mal feita, o sistema não será eficiente”, reforça Normey.
A tendência é que os custos caiam com o avanço da tecnologia, da mesma forma que ocorreu com os painéis solares ao longo da última década. Daniel Cantane acredita que o aprendizado obtido com o projeto catarinense será determinante:
“O projeto ajuda a definir arranjos técnicos ideais para microrredes, preparando o terreno para a viabilidade futura.”
O hidrogênio verde no centro das políticas climáticas globais
O hidrogênio verde é hoje uma das prioridades da agenda climática internacional. De acordo com Helton Alves, mais de 50% dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU estão relacionados à economia do hidrogênio.
“Há impacto ambiental na redução das emissões de gases de efeito estufa e impacto social na geração de empregos e capacitação. O fator humano também é decisivo na transição energética.”
O Plano Nacional do Hidrogênio (PNH2), coordenado pelo Ministério de Minas e Energia, reforça esse compromisso. O plano prevê instalar plantas-piloto em todas as regiões do país até 2025, tornando o Brasil o produtor mais competitivo até 2030 e criando hubs regionais de produção até 2035.
Entre as metas estão o marco regulatório do hidrogênio verde, incentivos fiscais, investimento em pesquisa e acesso a financiamentos sustentáveis. Júlio Normey resume a importância desse movimento:
“Os equipamentos vão evoluir, se tornar mais eficientes, o custo vai cair e, com o aumento da demanda, cria-se um ciclo virtuoso.”
O potencial brasileiro e a liderança catarinense na energia limpa
De acordo com a Agência Internacional de Energia (IEA), o Brasil tem potencial para atingir 41 GW de capacidade produtiva de hidrogênio verde até 2030 — energia suficiente para abastecer cerca de 205 milhões de residências.
Atualmente, o país opera apenas 5 MW, o que demonstra o tamanho da oportunidade. Santa Catarina, por sua vez, desponta como referência nacional: possui matriz elétrica majoritariamente renovável, alto índice de radiação solar e forte potencial eólico.
O estado ocupa hoje o 6º lugar no ranking nacional de geração solar, o que cria condições ideais para consolidar polos de produção de hidrogênio verde.
“Em comparação com outros países, nosso diferencial é a diversidade de fontes renováveis disponíveis. O hidrogênio verde aproveita essa sobra e evita o desperdício de recursos naturais”, reforça Helton Alves.
Segundo ele, o hidrogênio pode ser a base de uma nova indústria nacional, fortalecendo economias regionais e criando empregos qualificados.
Transição energética e o papel da Celesc no futuro sustentável do Brasil
A iniciativa da Celesc simboliza mais do que um avanço tecnológico — é um marco estratégico para a soberania energética brasileira. Com capacidade inicial de 75 kW, o sistema piloto em Faxinal dos Guedes poderá abastecer de 20 a 25 unidades consumidoras, demonstrando na prática como o hidrogênio verde pode sustentar comunidades inteiras de forma autônoma e limpa.
Para os especialistas envolvidos, a principal lição é clara: a transição energética exige não apenas inovação, mas também planejamento e investimento contínuo.
O projeto catarinense mostra que o futuro do hidrogênio verde no Brasil está mais próximo do que se imagina — e que ciência, tecnologia e sustentabilidade podem caminhar juntas rumo a um novo modelo energético nacional.