Modelo de delegação dos cartórios brasileiros é considerado exemplo mundial de eficiência e segurança jurídica, mas especialistas alertam que mudanças na Reforma Administrativa podem ameaçar avanços conquistados desde a Constituição de 1988.
O modelo brasileiro de delegação por concurso público dos serviços notariais e de Registro de Imóveis está no centro do debate da Reforma Administrativa no Congresso.
Especialistas do setor defendem que a estrutura atual, prevista na Constituição, combina eficiência, custo zero ao Estado e segurança jurídica, atributos que ajudaram a posicionar o país como referência na prestação extrajudicial.
Avaliações internas alertam, porém, que mudanças mal calibradas — especialmente no sentido de estatização — podem afetar a confiança do público e comprometer direitos como propriedade e moradia.
-
Mesmo após lei de 2019, casamento infantil ainda é permitido por brecha no Código Civil e fere direitos fundamentais das crianças, segundo especialista
-
Pai consegue reduzir pensão depois que Justiça descobriu que mãe juntou R$ 200 mil em investimentos feitos com o dinheiro das filhas; juiz diz que pensão não é para acumular patrimônio
-
STJ condena editora a pagar R$ 1 milhão por publicar livro com pseudônimo não autorizado e reforça direito moral inalienável do autor
-
Banco tem que pagar indenização de R$ 143 mil a cliente vítima de golpe da falsa central após STJ apontar falha nos sistemas de segurança
Como funciona a delegação e por que ela importa
Desde a Constituição de 1988, os serviços notariais e registrais são delegados a particulares aprovados em concurso público, que assumem a responsabilidade pela gestão e pela qualidade do atendimento sob fiscalização do Poder Judiciário.
Na prática, o delegatário opera por sua conta e risco, remunera a equipe com a receita de emolumentos e responde por metas e padrões técnicos, sem onerar o orçamento público.
Para o setor, essa configuração rompeu com o antigo modelo hereditário, introduziu critérios de mérito e profissionalizou a atividade.
Segundo o conselheiro da Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo (Arisp), Leandro Meireles, a adoção do concurso foi decisiva para elevar o nível do serviço.
“A delegação por concurso público trouxe profissionalismo, transparência e agilidade ao serviço extrajudicial”, afirma.
Na avaliação dele, a combinação de autonomia com controle jurisdicional sustenta previsibilidade, lisura e qualidade no atendimento.
Impactos na eficiência e no atendimento ao público
Ao longo das últimas décadas, registradores investiram em infraestrutura, capacitação de equipes e digitalização de processos.
Essa agenda, dizem os defensores do modelo, reduziu burocracia, encurtou prazos e ampliou a confiança dos usuários, que hoje acessam serviços antes restritos ao Judiciário.
A lógica é simples: com gestão direta do delegatário e supervisão judicial, há incentivo para inovar e responder a demandas locais sem travas administrativas típicas da máquina estatal.
Nesse ponto, Meireles destaca a experiência cotidiana das unidades delegadas.
Segundo ele, o público percebeu ganhos concretos em celeridade, qualidade e confiabilidade.
“Com delegatários aprovados em concurso público e submetidos a controle jurisdicional, o sistema consegue equilibrar autonomia e responsabilidade”, resume.
Avanços e padronização: a atuação da Arisp
A Arisp tem coordenado iniciativas para reforçar a padronização, a transparência e a formação continuada.
A entidade mantém a Uniregistral, universidade corporativa que oferece cursos para registradores e colaboradores, e desenvolve soluções digitais como emissão de certidões eletrônicas, visualização online de matrículas e pesquisa de bens.
Há, ainda, a Comissão de Enunciados, que publica interpretações que servem de referência para registradores, advogados e magistrados, buscando uniformidade de entendimentos em temas sensíveis.
A infraestrutura tecnológica inclui o uso de certificados digitais por meio da Autoridade Registral AR-Arisp, o que dá respaldo à autenticidade de documentos eletrônicos e fortalece a validade jurídica de atos praticados em ambiente digital.
Na visão do setor, esses elementos compõem um ciclo de melhoria contínua, em linha com a demanda do público por serviços mais rápidos e seguros.
Custo zero ao Estado e retorno fiscal
Um dos argumentos centrais a favor da manutenção do modelo é o impacto orçamentário.
Diferentemente da prestação direta, a delegação não depende de dotação pública para custear pessoal e operação, pois a remuneração provém dos emolumentos.
Parte dessa receita se converte em tributos e repasses, compondo retorno fiscal.
Para Meireles, essa equação sustenta a sustentabilidade do sistema, sem transferir custos para o contribuinte.
Interinidade expõe fragilidades quando o Estado assume
Apesar dos avanços, o setor reconhece vulnerabilidades, sobretudo em situações de interinidade — quando a serventia está vaga e um gestor provisório assume.
Nesses casos, a administração fica sujeita a limites para contratações, reajustes e investimentos, muitas vezes condicionados a autorização judicial.
Meireles avalia que essas restrições podem reduzir a capacidade de resposta a picos de demanda e frear decisões necessárias ao bom funcionamento do serviço.
Para mitigar efeitos, ele defende que a interinidade preserve margens de gestão, sempre com controle judicial.
Experiências históricas de oficialização estatal também são citadas por registradores como ilustrativas de desafios práticos.
Relatos de filas, senhas limitadas e longas esperas aparecem como sintomas de rigidez administrativa, baixa flexibilidade e escassez de recursos humanos, com impacto direto no cidadão.
Reconhecimento internacional e marco normativo
A comunidade internacional acompanha o modelo brasileiro com interesse, especialmente por seu desenho institucional e pelos resultados em segurança jurídica.
No plano normativo, destaca-se a adoção, pelo Conselho Nacional de Justiça, de regras para execução da Apostila da Haia, que facilita o reconhecimento de documentos no exterior e é apontada como exemplo de integração de cartórios brasileiros a padrões globais.
Segundo o setor, delegações estrangeiras já buscaram conhecer de perto a estrutura nacional de registros, o que reforça a percepção de referência regional.
O que está em jogo na Reforma Administrativa
O debate em torno da Reforma Administrativa reacende dúvidas sobre o futuro do arranjo institucional dos cartórios.
Propostas que indiquem estatização ou que reduzam a autonomia dos delegatários são vistas por registradores como risco de retrocesso institucional, com potencial para afetar a fé pública, a previsibilidade dos atos e a proteção de direitos.
Meireles afirma que qualquer alteração deve observar critérios claros, transparência e respeito a direitos adquiridos, para não fragilizar a credibilidade do sistema.
Do outro lado, quem defende ajustes estruturais costuma apontar necessidade de ampliar a cobertura em áreas com baixa oferta de serviços, aperfeiçoar mecanismos de transição nas vacâncias e intensificar metas de desempenho, sem perder de vista a responsabilidade social.
Nesse ponto, há espaço de convergência: o setor reconhece que há melhorias a fazer, sobretudo na digitalização integral de fluxos, na capacitação contínua e na uniformização de procedimentos em todos os Estados.
Caminhos de aperfeiçoamento sem desmontar o modelo
A leitura predominante entre registradores é que o caminho mais seguro passa por aperfeiçoar o que já funciona.
Entre as prioridades, citam-se a expansão de serviços digitais com interoperabilidade nacional, o fortalecimento de plataformas de autenticação eletrônica, a formação técnica permanente e a melhoria dos protocolos para gestão de serventias vagas, evitando descontinuidade do atendimento.
O objetivo, afirmam, é modernizar sem romper os pilares de concorrência, mérito, delegação e fiscalização judicial que estruturam a área desde 1988.
Diante do debate legislativo em curso, a questão central para a sociedade não é apenas “se” mudar, mas “como” fazê-lo, preservando o que entrega resultados e corrigindo gargalos comprovados.
Em um serviço que sustenta transações imobiliárias, crédito, garantia de propriedade e regularização fundiária, a manutenção da segurança jurídica aparece como fio condutor de qualquer ajuste.
Se a Reforma Administrativa avançar, quais salvaguardas deveriam ser explicitadas em lei para garantir eficiência, previsibilidade e proteção de direitos sem abrir espaço para retrocessos?