O novo projeto de lei em análise na Câmara dos Deputados propõe excluir da herança pais e mães que abandonaram afetivamente seus filhos, redefinindo direitos sucessórios e responsabilidades familiares.
Um novo projeto de lei apresentado à Câmara dos Deputados promete mudar de forma profunda o modo como a Justiça brasileira lida com o abandono afetivo e o direito à herança. A proposta, que já provoca debate intenso entre juristas e nas redes sociais, prevê que pais e mães que abandonaram os filhos possam ser excluídos da sucessão, perdendo o direito de herdar bens dos filhos após a morte.
O projeto, identificado como PL 767/2024, altera o Código Civil para incluir o abandono afetivo como causa de indignidade sucessória — ou seja, uma situação em que a pessoa é considerada moralmente indigna de herdar. Na prática, se o texto for aprovado, quem negligenciou o dever de cuidado e afeto durante a vida do filho não poderá se beneficiar de sua herança após a morte.
O que diz o projeto
O PL 767/2024 foi apresentado pelo deputado Fred Linhares (Republicanos-DF) e propõe alterar o artigo 1.814 do Código Civil, que lista as situações em que um herdeiro pode ser considerado indigno. Atualmente, a lei só prevê exclusão de herança para casos graves, como homicídio contra o autor da herança, crime doloso, violência ou falsificação de testamento.
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A proposta acrescenta um novo inciso ao artigo, reconhecendo como indigno aquele que “abandonou injustificadamente o descendente ou ascendente, privando-o de convivência, sustento material e cuidado afetivo”.
Segundo o autor do texto, o objetivo é corrigir uma “injustiça moral” do sistema atual. Hoje, mesmo pais que nunca contribuíram emocional ou financeiramente para a criação dos filhos podem, por força da lei, receber parte da herança quando esses filhos falecem — o que tem causado revolta em inúmeras famílias e motivado longas batalhas judiciais.
“Não é razoável que um pai ou mãe que nunca cumpriu suas obrigações familiares se beneficie do patrimônio de quem ele próprio abandonou”, declarou o parlamentar ao justificar o projeto durante tramitação na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
Base jurídica e precedentes
O tema não é novo no meio jurídico, mas ganha agora a chance de ser consolidado em lei. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconheceu o abandono afetivo como causa para indenização em alguns casos (como o REsp 1.159.242/SP, de 2012), estabelecendo que o dano moral pode ser configurado quando há omissão grave no dever de cuidado parental.
No entanto, essa responsabilização ainda se dá em ações cíveis, e não no campo sucessório. O que o PL 767/2024 faz é transportar o conceito de abandono afetivo para o direito das sucessões, equiparando-o a crimes que já afastam herdeiros por indignidade.
Para os defensores da proposta, trata-se de uma evolução natural do sistema: a afetividade passou a ser reconhecida como valor jurídico fundamental na Constituição Federal (artigo 226) e nas decisões do STF e STJ, e deve agora refletir-se nas leis patrimoniais.
Impacto no Código Civil e nas famílias brasileiras
Se aprovado, o PL 767/2024 poderá alterar o equilíbrio de heranças em milhares de famílias. A exclusão por indignidade não é automática — precisa ser reconhecida judicialmente —, mas o simples fato de existir essa possibilidade já muda a dinâmica das disputas familiares.
Filhos que foram abandonados, e que hoje são obrigados a dividir bens com pais ausentes, poderão pedir à Justiça que exclua o genitor do inventário. Em contrapartida, pais que provarem ter contribuído, ainda que de forma modesta, para o sustento e educação, poderão evitar a punição.
Para advogados de família, a proposta cria um novo paradigma: o direito sucessório deixa de ser apenas patrimonial e passa a incorporar um juízo ético. Não bastará ter laço de sangue — será preciso ter cumprido, minimamente, os deveres afetivos e morais previstos na legislação civil e na Constituição.
Debate entre juristas: justiça moral ou subjetividade perigosa?
O projeto divide opiniões no meio jurídico. Parte dos especialistas vê a proposta como uma vitória simbólica e moral, que reconhece o sofrimento de filhos abandonados e responsabiliza quem ignorou seus deveres parentais.
Outros, porém, alertam para o risco de subjetividade: como provar, de forma inequívoca, o abandono afetivo? O termo, apesar de consolidado na jurisprudência, depende de análise de circunstâncias emocionais e familiares difíceis de mensurar.
Há também preocupação de que a medida gere uma judicialização em massa de heranças, com filhos alegando abandono mesmo em relações distantes, mas não necessariamente negligentes.
Mesmo assim, o consenso é que o projeto abre uma discussão necessária sobre a função social da herança — não como simples transmissão de bens, mas como reconhecimento de vínculos reais de cuidado, presença e responsabilidade.
Comparativo internacional
Leis semelhantes já existem em outros países. Em Portugal, o Código Civil prevê a possibilidade de exclusão por indignidade moral, incluindo o abandono ou a falta de assistência a ascendentes e descendentes. Na França, tribunais também têm decidido, caso a caso, pela perda do direito de herança quando há comprovação de comportamento contrário ao dever familiar.
Com o PL 767/2024, o Brasil se aproxima dessas legislações, inserindo a afetividade como elemento jurídico pleno no campo patrimonial.
Próximos passos no Congresso
O projeto tramita na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara, onde aguarda parecer. Caso seja aprovado, seguirá para o Senado Federal antes de ir à sanção presidencial.
Há expectativa de que o tema avance ainda em 2025, dentro do pacote de modernização do Código Civil, que inclui outros pontos como união estável, sucessão digital e regime de bens.
O PL 767/2024 traduz um sentimento popular de justiça: quem abandona não deve herdar. Ao colocar o abandono afetivo no mesmo patamar de crimes graves para fins sucessórios, o projeto propõe uma revolução moral e jurídica.
Mais do que punir, ele busca reafirmar a função social da família e o valor do cuidado como dever fundamental. Se aprovado, pode se tornar um dos marcos mais simbólicos da reforma civil brasileira neste século — um divisor de águas entre o sangue e o afeto.