Expansão ferroviária no Brasil expõe a contradição de um país com minério abundante e siderurgia avançada, mas que importa trilhos sofisticados para obras estratégicas, mesmo com investimentos públicos e privados em mobilidade e carga.
A expansão recente da malha metroferroviária do país escancara um paradoxo: mesmo com uma das maiores reservas de minério de ferro do planeta e parques siderúrgicos de ponta, o Brasil segue importando trilhos ferroviários de alta precisão para obras estratégicas.
O caso mais visível ocorreu em São Paulo, onde a Linha 2-Verde do Metrô recebeu um lote de 1.462 barras importadas da China, com 18 metros cada, somando cerca de 1.500 toneladas, reforçando a dependência externa justamente no momento de aceleração das obras urbanas e de carga.
O que torna um trilho de alta precisão
Diferentemente de vergalhões ou perfis estruturais, trilhos ferroviários de alta precisão exigem metalurgia e controle de processo em outro patamar.
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Aços de microestrutura perlítica (padrão internacional EN 13674-1) passam por tratamentos térmicos específicos para ganhar dureza e resistência à fadiga por contato de rolamento, mantendo soldabilidade e estabilidade dimensional.
Fabricantes líderes produzem barras longas, de até 120 metros — e, no Japão, há linhas com 150 metros — reduzindo o número de soldas na via e aumentando a confiabilidade do traçado.
Esse padrão técnico ajuda a explicar a concentração da produção em poucos polos globais, como Áustria, Japão, Polônia, Espanha e Estados Unidos, onde grupos especializados dominam o laminado de perfis pesados, o tratamento “head hardened” e as tolerâncias milimétricas de retilineidade e acabamento superficial — requisitos essenciais para trilhos de alta precisão.
Por que a indústria brasileira saiu dos trilhos
O Brasil já fabricou trilhos no passado, mas a produção foi sendo descontinuada.
Relatos do setor indicam a paralisação da linha de trilhos na CSN em 1996, contexto em que a ausência de escala e a competição internacional pesaram contra a continuidade do negócio.
Desde então, o país importa praticamente todo o volume consumido, movimento confirmado por reportagens e por avaliações recorrentes de associações e concessionárias.
Há também o componente econômico. Segundo o consultor técnico Rubem Louzada, “fazer trilho não é como fazer vergalhão”.
“Trilhos ferroviários são produtos de altíssima engenharia: aços perlíticos com 0,7% de carbono, tratamentos térmicos específicos, microestrutura controlada e tolerâncias mínimas. São laminados em barras de até 120 metros com acabamento e alinhamento milimétrico”, escreveu em artigo, ao defender que a decisão envolve tecnologia, certificação e mercado.
Para ele, o consumo médio anual no Brasil gira em torno de 300 mil toneladas, volume insuficiente para justificar uma linha dedicada e competitiva diante dos grandes players.
Escala e investimento bilionário
Abrir ou modernizar uma usina para laminar trilhos ferroviários de alta precisão exige investimento alto e demanda estável por muitos anos.
Estimativas citadas no setor falam em mais de US$ 500 milhões para viabilizar uma fábrica moderna, algo que, sem contratos de longo prazo e carteira garantida, dificilmente se paga em um mercado de ciclos longos e obras intermitentes.
Competição global pressiona preço e prazos
Enquanto o Brasil avalia projetos, produtores consolidados no exterior operam com excesso de capacidade e entregas programadas, ganho de escala e logística madura.
Para as concessionárias e governos, importar trilhos de alta precisão pode sair mais barato e rápido — sobretudo quando há janela de obras e cronogramas rígidos — do que organizar uma cadeia nacional do zero.
A China no centro da cadeia
A China, maior fabricante mundial de insumos ferroviários, ocupa posição central nessa cadeia.
Além das exportações de trilhos ferroviários de alta precisão, o país tem reforçado parcerias com o Brasil para projetos e tecnologia, o que inclui cooperação técnica e integrações logísticas continentais anunciadas pelo Ministério dos Transportes em julho de 2025.
No front estadual, São Paulo mantém contratos relevantes com fabricantes chineses para material rodante e sistemas, o que facilita o “casamento” com fornecedores de via permanente e reforça a escolha por trilhos importados nas ampliações em curso.
Minério não garante produção nacional
“Ter minério” não significa “ter trilho”.
O Brasil está entre os maiores produtores e detentores de reservas de minério de ferro, mas transformar minério em trilhos ferroviários de alta precisão exige outro estágio da cadeia — siderurgia dedicada, laminação pesada, tratamento térmico in-line, retificação fina, inspeção ultrassônica e certificações.
Essa sofisticação explica por que poucos países dominam a fabricação de trilhos premium e superpremium.
Políticas públicas e gargalos
Especialistas do setor ferroviário apontam que uma planta adequada ao padrão global só se viabiliza com produção anual entre 400 mil e 450 mil toneladas, algo acima do consumo médio brasileiro reportado pelo mercado.
Ou seja, seria necessário agregar encomendas de longo prazo, vincular concessões e adotar instrumentos que reduzam o risco industrial.
Nesse sentido, a agenda de neoindustrialização do governo — a Nova Indústria Brasil (NIB) — prevê uso de compras públicas estratégicas e fortalecimento do crédito de investimento como alavancas para cadeias de alto conteúdo tecnológico.
Em maio de 2025, o BNDES anunciou R$ 300 bilhões em recursos até 2026 para apoiar projetos industriais, com ênfase em produtividade, inovação e descarbonização — diretrizes alinhadas a uma política para infraestrutura sobre trilhos, caso Estados e União optem por condicionar parte dos investimentos à formação de fornecedores locais.
Concessionárias e expansão ferroviária
Do lado da operação, as ferrovias de carga vêm ganhando eficiência, e a expansão urbana em capitais pressiona por mais entregas.
A cada aumento da participação ferroviária na matriz, há queda proporcional de emissões e ganhos logísticos, argumento usado por entidades do setor para defender prioridade a projetos de via permanente e superestrutura — incluindo trilhos de alta precisão — nas carteiras de investimentos públicos e privados.
Há espaço para reverter a dependência?
Para Rubem Louzada, o quadro é reversível, mas depende de um “pacto” entre logística e indústria de base.
Isso inclui previsibilidade de demanda, coordenação entre concessões e fornecedores, e metas claras de nacionalização ao longo do tempo.
Segundo ele, “é preciso conectar as concessões ferroviárias com a indústria nacional” para que o investimento em tecnologia de trilhos ferroviários de alta precisão faça sentido econômico.
Quem poderia produzir trilhos no Brasil
Grupos com laminação de perfis pesados e presença histórica no setor siderúrgico brasileiro já avaliaram a viabilidade de uma linha de trilhos no passado, mas apontaram insuficiência de mercado interno e competição externa como entraves centrais.
Sem sinalização de demanda contínua e contratos de longo prazo, a tendência é a manutenção das importações.
E agora? Com a malha sendo ampliada e a agenda de descarbonização ganhando tração, a pergunta que move a discussão é simples: o Brasil pretende transformar o boom de obras em uma política industrial capaz de sustentar uma fábrica de trilhos, ou continuará importando trilhos ferroviários de alta precisão sempre que um novo trecho sair do papel?