O desvio do rio Doce para um canal artificial, durante a construção da hidrelétrica de Aimorés, transformou o coração da cidade mineira em um leito seco de pedras, silêncio e promessas não cumpridas
O que antes era a orla viva do rio Doce, em Aimorés (MG), hoje é um lajeado de pedras e areia. Da calçada à beira do antigo curso d’água, os moradores não veem mais o rio. Em vez disso, enxergam apenas uma estreita faixa líquida escorrendo a centenas de metros de distância.
Sobre o leito seco, poças infestadas de mosquitos tomam o lugar do fluxo natural. Cobras e urubus disputam espaço entre restos de lixo e carcaças de animais.
O cenário é de abandono, e os 25 mil habitantes da cidade convivem com o impacto direto da ausência de um rio que, por mais de um século, deu sentido à vida local.
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O desvio que mudou o destino da cidade
Os moradores atribuem o colapso ao impacto da hidrelétrica de Aimorés, construída entre 2001 e 2005. A usina, instalada justamente no ponto onde o rio banhava a cidade, desviou o curso natural do Doce para um canal artificial de 11 quilômetros.
O novo percurso passa por trás das montanhas e só retorna ao leito original depois de cruzar toda a orla urbana.
Com isso, Aimorés ficou com o vazio — uma paisagem árida, cercada por promessas não cumpridas e um desenvolvimento que nunca se concretizou.
“Foi um abandono total para nós a perda desse rio. Foi o mesmo que arrancar o coração da gente”, lamenta Maria Helena Calvão Casper, de 80 anos, nascida na cidade.
A promessa que virou ficção
O projeto da usina, idealizado pela Vale e pela Cemig, chegou a Aimorés envolto em discursos de progresso.
A promessa era de empregos, compensações ambientais e uma “lâmina d’água” permanente em frente à cidade — um espelho líquido controlado pela liberação regular de água.
O argumento convenceu o Ibama, que concedeu a licença ambiental após a apresentação de uma maquete exibida em um ginásio local.
Segundo o plano, o trecho urbano teria um volume constante de água, sem risco de secar. Na prática, o espelho d’água nunca existiu.
“Disseram que isso seria feito em todo o trecho, mostraram a maquete. Depois que fizeram a obra, ela sumiu, e o rio nunca mais voltou ao normal”, relata Marco Aurélio Almeida de Oliveira, dono do Aimorés Palace Hotel.
O rio que desapareceu
O pulso natural do rio Doce deixou de existir. Antes, sua vazão mínima chegava a 343 metros cúbicos por segundo. Agora, o volume cai para menos de 5% disso durante o ano.
Documentos obtidos pela Folha revelam que o Ibama já sabia, desde o início, que o impacto seria severo.
Mesmo assim, considerou “aceitáveis” as condições apresentadas pela empresa, autorizando o funcionamento da hidrelétrica. Na prática, bastava que o rio parecesse existir.
Além disso, relatos e registros apontam para pressões políticas durante o processo de licenciamento. O espelho d’água prometido acabou se mostrando uma ficção ambiental — uma solução técnica nunca executada.
“Antes o rio baixava em certas épocas, mas sempre tinha água. Hoje, a gente só vê pedra. Essa promessa de lâmina d’água nunca se cumpriu. A cidade perdeu o rio que tinha”, diz o engenheiro agrônomo e biólogo Jaeder Lopes Vieira, 60, também nascido em Aimorés.
Um plano antigo com consequências modernas
A ideia de desviar o rio Doce é anterior à construção da usina. A concessão para o projeto foi dada à Cemig ainda em 1975, quando nem existiam as leis ambientais que hoje regem o setor.
Assim, o plano executado entre 2001 e 2005 seguiu um modelo antigo, pouco aberto à contestação pública.
“Falaram que era preciso desviar o rio para ter uma queda maior de água. Mas para que desviar 11 quilômetros em frente a uma cidade? Isso não faz sentido”, critica Vieira.
Energia para milhões, silêncio para uma cidade
Com potência de 330 megawatts, a hidrelétrica é capaz de abastecer até 1 milhão de pessoas. O número é expressivo, mas o custo ambiental e social é igualmente alto. O que antes era símbolo de progresso se transformou em um lembrete constante de perda.
A concessionária responsável, a Aliança Geração de Energia — formada pela Vale e pelo grupo americano GIP (Global Infrastructure Partners) — afirma cumprir todas as exigências ambientais e manter o monitoramento do Ibama.
No entanto, o órgão ambiental pressiona a empresa para apresentar uma solução definitiva aos danos. Caso contrário, a usina pode perder sua concessão.
A esperança que ainda corre em Aimorés
Apesar do cenário desolador, parte dos moradores de Aimorés ainda acredita que o rio pode renascer. Jaeder Lopes Vieira, que cresceu mergulhando nas águas do Doce, diz que não desistiu.
“A gente acredita que isso pode ser revertido, que a água pode voltar. Nunca é tarde. Urge que se faça isso.”
Enquanto isso, o leito seco do rio segue como cicatriz aberta no coração da cidade — uma lembrança de que o progresso, quando ignora o equilíbrio natural, pode custar caro demais.
Com informações de Folha de São Paulo.



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