Engenheiro agrônomo conhecido como “pai da soja tropical” ajudou a transformar o Cerrado em potência agrícola, desenvolvendo mais de 150 variedades do grão e contribuindo para que o Brasil se tornasse o maior produtor e exportador mundial.
Aos 83 anos, o engenheiro agrônomo Romeu Afonso de Souza Kiihl atribui o salto da soja no País a uma combinação rara de fatores: genética, correção do solo e coragem do agricultor brasileiro.
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo (Estadão), o pesquisador, conhecido como “pai da soja tropical”, relembra seis décadas de trabalho em melhoramento genético, com mais de 150 variedades adaptadas a diferentes regiões — sobretudo ao Cerrado —, e afirma que a pesquisa avança agora com a edição de genes.
O resultado desse esforço aparece nos números: de uma produção de 490 mil toneladas nos anos 1960, o Brasil chegou a 168,3 milhões de toneladas na safra 2024/2025, consolidando-se como maior produtor e exportador mundial do grão.
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Da paixão pelo café à liderança na soja
Nascido em Caconde (SP), cidade de tradição cafeeira, Kiihl queria ser pesquisador em tecnologia de alimentos e sonhava trabalhar com café.
A trajetória mudou ainda na graduação, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (USP/Esalq), quando a disciplina de genética definiu seu rumo.
O jovem cientista se aproximou das plantas anuais e, por circunstâncias de carreira, ingressou na seção de leguminosas do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) para trabalhar com uma cultura então considerada inexpressiva no País: a soja.
Na época, o plantio era incipiente.
São Paulo somava cerca de 20 mil hectares, e a produção nacional mal passava de meio milhão de toneladas.
A virada viria com a constatação de que a leguminosa tem uma vantagem agronômica decisiva: fixa nitrogênio no solo por meio de simbiose com bactérias, dispensando adubo nitrogenado em larga escala.
Formação nos EUA e a virada técnica da latitude
O aperfeiçoamento de Kiihl nos Estados Unidos moldou as bases de seu programa de melhoramento.
Com mestrado e doutorado na Mississippi State University, sob influência de Edgard Emerson Hartwig, ele se debruçou sobre a adaptação por latitude, ajustando fotoperíodo e desenvolvimento para que materiais selecionados em Stoneville (33°N) reproduzissem o comportamento em Campinas (23°S).
O método, paciente e repetitivo, permitiu construir linhagens adequadas às condições brasileiras.
De volta ao Brasil, Kiihl atuou por oito anos no IAC, seguiu para o Instituto Agronômico do Paraná (Iapar) e, posteriormente, integrou a Embrapa Soja, onde permaneceu por 25 anos.
Ali, participou de um dos maiores esforços de melhoramento do mundo, com dezenas de pesquisadores de doutorado voltados à soja.
O objetivo era nítido: criar variedades para todo o território nacional, com foco no Brasil Central.
A tríade que destravou o Cerrado
Para o pesquisador, o avanço no Brasil Central se explica por uma tríade técnica e humana.
Primeiro, a genética que introduziu o período juvenil longo, ajustando o ciclo da planta para latitudes mais baixas.
Depois, a correção de solos no Cerrado, sustentada por calagem e adubação.
Por fim, o empuxo do produtor brasileiro, disposto a empreender em regiões remotas.
“Sou admirador do agricultor brasileiro porque a coragem que esse pessoal tem, eu acho incrível”, disse ao Estadão.
Essas frentes abriram uma fronteira agrícola de cidades como Sinop, Lucas do Rio Verde e Primavera do Leste (MT) e Chapadão do Sul (MS), que evoluíram de postos isolados a polos de alta produtividade, tecnologia e IDH em ascensão.
Com a soja, veio um cinturão de serviços e infraestrutura que multiplicou os efeitos da produção.
Embrapa, escala e o diferencial sul-americano
O Brasil se destacou também por algo raro no mapa agrícola: a capacidade de colher soja e milho no mesmo ano em amplas áreas, o que elevou a eficiência do sistema.
Enquanto países com área cultivável madura precisam optar entre culturas, aqui a rotação e o safrinha de milho ampliaram a oferta.
Ao lado de Argentina e Paraguai, o País tornou-se pilar do abastecimento global, com uma logística que privilegia o transporte de soja por navio e uma base científica que acelerou a adaptação de materiais às condições tropicais.
Edição de genes e o óleo do futuro
A fronteira tecnológica, segundo Kiihl, aponta para a edição de genes, que permite alterações precisas no DNA e acelera ganhos que levariam anos em melhoramento convencional.
“Hoje a edição de genes é uma ferramenta muito poderosa que vai permitir que a gente faça muitas modificações, de forma acelerada”, afirmou.
Entre as aplicações, cita a possibilidade de modificar o óleo de soja para atingir perfis semelhantes aos do óleo de canola ou do azeite de oliva, ampliando valor agregado e mercados.
Agricultura regenerativa e integração de sistemas
Ao comentar sustentabilidade, o engenheiro agrônomo sustenta que o plantio direto e a cobertura permanente do solo compõem práticas centrais de agricultura regenerativa, conceito que busca entregar à próxima geração um solo melhor.
Ele destaca a integração lavoura-pecuária-floresta e a restauração de pastagens degradadas com o uso da soja como viabilizadora econômica da recuperação.
Na sua avaliação, a fixação biológica do nitrogênio confere à cultura uma vantagem ambiental ao reduzir a dependência de fertilizantes nitrogenados derivados do petróleo.
Novas fronteiras e a força do Matopiba
A expansão atual se concentra na região do Matopiba — Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia — e em áreas de renovação de pastagens.
Ao recuperar o pasto com soja, argumenta, a própria cultura financia a reabilitação e prolonga a vida útil da pastagem.
Para além do mapa brasileiro, Kiihl considera improvável que outras regiões do mundo repliquem o ritmo sem um componente decisivo: o empreendedorismo do produtor brasileiro, moldado por migrações internas, propriedades familiares e busca por áreas maiores desde o Sul rumo ao Centro-Oeste e Norte.
Formação, pesquisa e a nova geração
A recomendação do pesquisador aos jovens é direta: estudar ao máximo.
Ele observa um bom nível técnico entre produtores e profissionais do Centro-Oeste, em contraste com o envelhecimento do perfil médio do agricultor nos Estados Unidos.
Acompanhando literatura científica recente, nota a internacionalização das equipes de pesquisa e incentiva a formação sólida em agronomia, genética e manejo.
Agenda setorial e memória
Mesmo aposentado do serviço público, Kiihl segue em experimentos privados em busca de novas variedades.
Sua trajetória foi reunida em livro publicado pela família.
Em 2025, ele figura entre os nomes confirmados no Congresso Brasileiro de Soja (CBSoja) e no Mercosoja, programados de 21 a 24 de julho, no Centro de Exposições e Convenções Expo Dom Pedro, em Campinas (SP), com abertura dedicada à evolução da soja no Mercosul e às comemorações dos 100 anos da introdução da soja no Brasil e dos 50 anos da Embrapa Soja.
Entrevista realizada e publicada originalmente pelo Estadão.
“Sou admirador do agricultor brasileiro”, reforça o pesquisador, lembrando famílias que deixaram o Rio Grande do Sul rumo a áreas despovoadas e, com poucos recursos, ergueram polos de produção sob condições adversas.
Se genética, solo corrigido e ousadia abriram as portas do Cerrado, a pergunta que fica é: qual será o próximo salto tecnológico capaz de redesenhar a soja brasileira nos próximos anos?