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O boom das óticas: como a indústria dos óculos se tornou um negócio onipresente e o que a venda casada de consultas revela sobre o acesso à saúde visual no Brasil

Escrito por Carla Teles
Publicado em 16/10/2025 às 20:30
O boom das óticas: como a indústria dos óculos se tornou um negócio onipresente e o que a venda casada de consultas revela sobre o acesso à saúde visual no Brasil
Entenda o boom das óticas no Brasil e o risco por trás do “exame grátis”. Saiba como a venda casada ameaça sua visão e mascara doenças graves como o glaucoma.
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Com faturamento de R$ 26,9 bilhões em 2024, o boom das óticas é impulsionado por exames de vista gratuitos que, na prática, configuram venda casada e mascaram doenças graves.

O crescimento exponencial do mercado óptico no Brasil revela um paradoxo alarmante: enquanto milhares de novas lojas surgem em cada esquina, facilitando o acesso a óculos, um modelo de negócio agressivo e muitas vezes ilegal coloca em risco a saúde visual de milhões de brasileiros. O boom das óticas, que alcançou um faturamento de R$ 26,9 bilhões em 2024, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Óptica (Abióptica), é sustentado por uma combinação de fatores como o envelhecimento da população e o aumento de problemas visuais ligados ao uso excessivo de telas. No entanto, a estratégia central para capturar clientes explora uma grave falha no sistema de saúde público.

A prática de oferecer “exames de vista gratuitos” condicionados à compra dos óculos, uma forma de venda casada, proibida pelo Código de Defesa do Consumidor, tornou-se a porta de entrada para um mercado que lucra com a urgência e a desinformação. Diante de longas filas de espera no SUS, que podem durar meses, e do custo de consultas particulares, muitos consumidores optam pela solução imediata oferecida pelo varejo. O que parece uma vantagem, porém, é uma armadilha que impede o diagnóstico de doenças silenciosas e devastadoras, como glaucoma e catarata, transformando a conveniência em um grave problema de saúde pública.

Por que as óticas estão em toda parte?

Os números confirmam a onipresença: o Brasil encerrou 2024 com mais de 71 mil pontos de venda, um crescimento de 8% em apenas um ano. Essa expansão massiva é reflexo de uma demanda crescente e multifacetada. A análise dos dados, no entanto, revela um cenário ainda mais complexo. Enquanto a Abióptica mapeia o varejo óptico tradicional, dados do Sebrae, baseados no Cadastro Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), apontam para um universo de mais de 193 mil estabelecimentos que comercializam artigos de óptica, seja como atividade primária ou secundária. Essa pulverização extrema dificulta a fiscalização e abre espaço para irregularidades.

O motor por trás dessa demanda é uma “tempestade perfeita”. De um lado, o envelhecimento da população aumenta a prevalência de condições como catarata e presbiopia. Do outro, o uso excessivo de telas por jovens e adultos gera o que especialistas chamam de “epidemia de miopia”, criando uma base de consumidores cada vez mais jovem. Soma-se a isso a transformação cultural dos óculos em um acessório de moda, uma estratégia que incentiva a compra de múltiplos pares e eleva o ticket médio. Essa combinação de necessidade médica e desejo de consumo torna o mercado extremamente resiliente e lucrativo.

O “exame grátis” que pode custar caro

A estratégia do “exame de vista gratuito” é a principal ferramenta de conversão do setor. O consumidor é atraído pela promessa de uma avaliação sem custo, mas, na prática, a entrega da receita com o grau costuma ser condicionada à compra dos óculos na mesma loja. Essa prática não só é uma venda casada, explicitamente proibida pelo Artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, como também cria um conflito de interesses irreconciliável: o objetivo do vendedor é vender, enquanto o do profissional de saúde é diagnosticar. Quando as duas funções se misturam, a isenção do diagnóstico fica comprometida, podendo levar à prescrição de graus incorretos ou desnecessários.

Este modelo de negócio prolifera ao explorar o vácuo deixado pelo sistema de saúde. Um cidadão que precisa de uma consulta oftalmológica pelo SUS enfrenta uma espera que, em grandes centros como São Paulo, chega a 97 dias, mas que pode facilmente ultrapassar seis meses em outras regiões. No setor privado, uma consulta pode custar de R$ 120 a mais de R$ 800. Para o trabalhador de baixa renda que depende da visão e não pode esperar, a ótica oferece uma solução imediata e aparentemente sem custo. O setor, portanto, lucra diretamente com a ineficiência do Estado em garantir o acesso à saúde visual, normalizando uma prática ilegal que se disfarça de benefício social.

No centro dessa discussão está a disputa entre duas profissões. O oftalmologista é um médico com no mínimo nove anos de formação (graduação e residência), habilitado para diagnosticar e tratar todas as 3.892 doenças oculares, realizar cirurgias e prescrever medicamentos e óculos. Já o optometrista é um profissional de nível superior, formado em Optometria, treinado para realizar exames de refração (medir o grau) e adaptar lentes de contato, devendo encaminhar ao médico qualquer suspeita de doença. Ele não é médico e, portanto, não pode diagnosticar patologias.

A batalha legal entre as categorias culminou em uma decisão histórica do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 131. Em 2021, a Corte decidiu que as restrições de decretos da década de 1930 não se aplicam a optometristas com formação superior, permitindo que realizem exames refrativos. Contudo, a decisão não resolveu a questão central: a atuação desses profissionais dentro de estabelecimentos comerciais. Isso perpetua o conflito de interesses e a guerra de narrativas, com conselhos de medicina denunciando o exercício ilegal da medicina e conselhos de optometria defendendo seu papel no atendimento primário da visão.

O diagnóstico perdido: o que o teste da ótica não vê

O maior perigo do modelo de “exame na ótica” é a falsa sensação de segurança que ele proporciona. Um teste de refração foca exclusivamente em encontrar o grau para miopia, hipermetropia ou astigmatismo. Ele não é, e nem se propõe a ser, uma consulta médica completa. Procedimentos essenciais, como a medição da pressão intraocular (para detectar glaucoma) e o exame de fundo de olho (para avaliar a retina e o nervo óptico), são ignorados. O glaucoma, conhecido como o “ladrão silencioso da visão”, não apresenta sintomas iniciais e, quando a perda visual é percebida, o dano já é irreversível.

O paciente vulnerável, geralmente com menor poder aquisitivo e informação, entra na loja com a visão embaçada, faz um teste rápido, compra os óculos e acredita ter resolvido o problema. Enquanto isso, a melhora temporária da visão pode mascarar a progressão de doenças graves. O boom das óticas, ao desviar milhões de pessoas do caminho do diagnóstico médico completo, pode estar inadvertidamente contribuindo para um futuro aumento nas taxas de cegueira evitável no Brasil. O lucro imediato do varejo gera um custo social e de saúde pública de proporções alarmantes para o futuro.

O crescimento do mercado óptico brasileiro é uma realidade inegável, mas ele se apoia sobre as fragilidades do acesso à saúde no país. A conveniência do “exame na hora” preenche uma lacuna deixada pelo Estado, mas o faz à custa da saúde ocular da população. Para alinhar o sucesso comercial com a responsabilidade social, é urgente uma fiscalização mais rigorosa contra a venda casada, campanhas de conscientização para o consumidor e uma regulamentação que separe a consulta de saúde da venda de produtos. Afinal, a saúde dos olhos não pode ser tratada como um simples item de prateleira.

Você já se deparou com a oferta de “exame de vista grátis”? Acredita que a conveniência compensa o risco de não ter um diagnóstico médico completo? Compartilhe sua experiência nos comentários, queremos entender como o consumidor enxerga essa situação.

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Carla Teles

Produzo conteúdos diários sobre tecnologia, inovação, construção e setor de petróleo e gás, com foco no que realmente importa para o mercado brasileiro. Aqui, você encontra oportunidades de trabalho atualizadas e as principais movimentações da indústria. Tem uma sugestão de pauta ou quer divulgar sua vaga? Fale comigo: carlatdl016@gmail.com

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