Estudo do Ibre-FGV mostra que o aumento do Bolsa Família para R$ 670 teria reduzido a oferta de trabalho formal, especialmente entre jovens. Empresários relatam dificuldade para preencher vagas e pedem ajustes no programa assistencial.
A combinação de taxa de desocupação baixa, expansão recente do Bolsa Família e mudança de perfil da força de trabalho reacendeu o debate sobre a falta de mão de obra no comércio e nos serviços.
Levantamento do Ibre-FGV aponta que o benefício, hoje com valor médio de R$ 671,54, teria reduzido a oferta de trabalhadores menos qualificados e estimulado a permanência na informalidade, sobretudo entre jovens.
Para empresários e economistas, o cenário de mercado apertado seria propício a ajustes no desenho dos programas assistenciais.
-
Paraíso de ricos do tamanho de Alagoas já pertenceu ao Brasil e está atraindo cada vez mais bilionários — e fica aqui do lado
-
Argentina no fim do poço de novo? Reservas de Dólar evaporam e FMI trava o que poderia salvar Milei
-
CNH sem autoescola? Proposta pode liberar habilitação sem aula presencial, afetar 15 mil empresas e colocar 300 mil empregos em xeque, diz Feneauto
-
Tarifaço pode prejudicar Trump e gerar até US$ 165 bilhões de prejuízo aos EUA, mas empresas podem nunca ver esse dinheiro de volta
Pleno emprego pressiona contratações
Com a desocupação em 5,6% em agosto, o mercado opera próximo ao que economistas chamam de pleno emprego.
Nesse contexto, empresas relatam dificuldade crescente para preencher vagas operacionais em supermercados, padarias, agricultura e outras atividades intensivas em mão de obra.
Representantes do setor afirmam que parte dos candidatos recusa vínculos formais para não perder o auxílio.
Em regiões com alta concentração de beneficiários, relatos dão conta de situações em que “há mais pessoas recebendo Bolsa Família que os empregados com carteira assinada”, segundo o economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), Marcel Solimeo.
O que diz o estudo do Ibre-FGV
A pesquisa conduzida por Daniel Duque, do Ibre-FGV, relaciona a ampliação do benefício ao comportamento de participação no mercado de trabalho.
O valor do programa, que era de R$ 190 em 2019, subiu para cerca de R$ 400 após a pandemia, alcançou R$ 600 em 2022 e passou a representar 35% da renda mediana do trabalho, ante 15% anteriormente.
O número de famílias atendidas teria saltado de 14 milhões para 21 milhões, enquanto o orçamento anual aproximou-se de R$ 170 bilhões.
Segundo o estudo, a taxa de participação não retornou ao padrão pré-pandemia e a expansão do benefício ajudou a explicar o descompasso.
Entre homens de 17 a 30 anos, a oferta de trabalho teria caído com mais intensidade, assim como a busca por postos formais.
Duque resume a dinâmica ao afirmar que “quem mais reage ao aumento de renda do Bolsa Família são os homens, que têm maior probabilidade de estar em ocupações formais e menos restrições de tempo impostas pela família”.
Ele também observa um efeito limiar: grupos recém-elegíveis teriam reduzido a participação laboral em 11% frente famílias quase idênticas que ficaram de fora por pequena diferença de renda.
Isso se traduz, no cálculo do pesquisador, na ideia de que “a cada duas famílias que recebem Bolsa Família, uma sai da força de trabalho”.
Incentivos e a “regra de proteção”
A partir de junho, passou a vigorar a regra de proteção: famílias que ultrapassam a renda per capita de R$ 218 podem permanecer por até 12 meses no programa, recebendo 50% do valor.
A intenção do governo foi suavizar a transição para o emprego formal e reduzir o receio de perder o benefício de forma abrupta.
Na prática, porém, empresários relatam que o incentivo ainda é insuficiente para reter candidatos, especialmente em vagas de salários baixos e jornadas extensas.
Para Solimeo, o ideal é manter uma “porta de saída” efetiva, com avaliações periódicas, capacitação e assistência à recolocação: “o cidadão deslanche na vida profissional”.
O retrato do chão de loja
No comércio e nos serviços, a queixa é recorrente.
Há dificuldade para preencher posições básicas, rotatividade em alta e maior concorrência com ocupações por conta própria.
A avaliação de parte do empresariado é que o custo do emprego formal — impulsionado por encargos da CLT — torna menos atraente a contratação, enquanto a renda garantida do programa, somada a bicos e aplicativos, sustenta escolhas mais flexíveis.
A leitura se soma a preocupações com o quadro fiscal: gastos elevados empurrariam os juros para cima e encareceriam o crédito, afetando investimento e produtividade.
Vozes da academia e do setor empresarial
Para Antonio Lanzana, economista e professor da FEA-USP, empresas de menor porte são as mais afetadas, pois dependem de trabalhadores com baixa qualificação.
Ele reconhece que muitos potenciais empregados evitam vínculos formais para não perder o benefício ou preferem atividades informais, o que cria desalinhamento no mercado formal.
Ainda assim, pondera que as transferências não explicam tudo.
Há demografia desfavorável, com perda do contingente jovem; crescimento acima do potencial em parte do período pós-pandemia, exaurindo a ociosidade; e atração por apps e trabalho flexível, que competem com o emprego tradicional.
“Não vejo movimentos na área empresarial para revisão desse tipo de benefício, mas as críticas existem no sentido de que há excesso de gastos públicos — o que obriga o Banco Central a manter taxas de juros elevadas que prejudicam a gestão empresarial”, diz, ao reconhecer o quadro de pleno emprego.
Produtividade, qualificação e renda
Outro ponto recorrente no debate é a baixa produtividade.
Empresários e economistas defendem que ganhos sustentáveis viriam de investimentos em educação e saúde, além de qualificação profissional.
Houve aumento real da remuneração média nos últimos trimestres e expansão da massa de rendimentos, impulsionada tanto pelo trabalho quanto pelas transferências.
O efeito colateral seria a maior dificuldade das empresas em recrutar, especialmente para funções de entrada, pressionadas por salários pouco competitivos diante do pacote de renda familiar.
O papel do congelamento e o risco político
Duque ressalta que, após a forte expansão até 2023, o programa não avançou entre 2024 e 2025, o que relativiza sua explicação para a escassez mais recente de mão de obra.
Ele observa que o governo evitou reajustar o valor do benefício pela inflação para conter distorções, decisão que, com o tempo, reduz o poder de compra do auxílio e pode tornar o emprego formal mais atrativo.
O pesquisador também aponta o custo político de reformas: o valor fixo e padronizado do benefício ganhou popularidade e se tornou sensível a mudanças, diferentemente do antigo modelo per capita, que variava conforme a composição familiar e tinha melhores resultados no combate à pobreza, mas era de comunicação difícil.
Propostas na mesa: redesenho e condicionantes
Entre sugestões ventiladas no meio empresarial estão ajustes no valor de referência e reforço de condicionantes ligadas à educação e à produtividade.
Há quem defenda transferências direcionadas a mães com filhos pequenos e a jovens que saíram da escola para complementar renda, como forma de mitigar efeitos negativos sobre o mercado de trabalho sem enfraquecer a proteção social.
Outra proposta recorrente é ampliar treinamento e intermediação de mão de obra, com metas mensuráveis, de modo a garantir que a “porta de saída” seja concreta e não apenas retórica.
Fatores estruturais seguem pesando
Mesmo críticos do desenho atual reconhecem que o Bolsa Família é apenas uma peça do quebra-cabeça.
A queda na natalidade e o envelhecimento populacional comprimem a base jovem, essencial para setores intensivos em trabalho.
A preferência por ocupações flexíveis cresceu, e o custo do emprego formal segue elevado.
Sem avanços em educação básica, formação técnica e ambiente de negócios, especialistas avaliam que as empresas continuarão disputando um contingente limitado de trabalhadores, com ou sem auxílio.
Diante desse quadro, o que deve pesar mais no curto prazo: ajustes no benefício para calibrar incentivos ou medidas para baratear o emprego formal e acelerar a qualificação, sem perder de vista a proteção aos mais vulneráveis?