Empresas de tecnologia voltam a adotar o método 9-9-6, que impõe 12 horas diárias de trabalho e reacende o alerta sobre burnout e abusos corporativos.
O chamado método 9-9-6, que defende o trabalho das nove da manhã às nove da noite, seis dias por semana, vem se espalhando novamente entre startups e grandes empresas de tecnologia. O modelo, que surgiu na China e chegou a ser banido por promover jornadas abusivas, agora reaparece em empresas ocidentais e já desperta preocupação entre trabalhadores e especialistas em saúde mental.
Segundo reportagens da Wired, InfoMoney e Forbes, companhias do Vale do Silício estão aderindo à cultura de trabalho extremo como forma de acelerar entregas em meio à corrida por avanços em inteligência artificial. No Brasil, relatos em redes profissionais apontam que o ritmo começa a ser copiado em startups locais, com gestores exigindo “disponibilidade total” e jornadas que ultrapassam 60 horas semanais.
O que é o método 9-9-6 e por que ele preocupa
O termo 9-9-6 vem da sigla que define o regime: trabalhar das 9h às 21h, seis dias por semana, totalizando 72 horas. A prática foi popularizada na década de 2010 por empresas chinesas como Alibaba e Huawei, que defendiam a ideia de que o sucesso profissional exige “sacrifício e dedicação integral”.
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A pressão era tamanha que, em 2021, a Suprema Corte da China classificou o método como ilegal e determinou que jornadas acima de 48 horas semanais deveriam ser compensadas. Ainda assim, a mentalidade do “trabalhar até cair” resistiu — e agora ressurgiu em novos polos de inovação.
Startups de IA reacendem o debate sobre limites do trabalho
A revista Wired revelou que várias startups de inteligência artificial dos Estados Unidos estão abraçando versões do 9-9-6 para manter a velocidade de desenvolvimento frente à concorrência. Fundadores justificam o modelo como uma forma de “maximizar foco e resultados” em fases de investimento intensivo.
A Forbes cita casos de engenheiros que relatam turnos de 12 a 14 horas diárias, com refeições feitas nas próprias mesas e pouca separação entre vida pessoal e profissional. “É como voltar à década de 2010, quando o Vale do Silício vivia a era do heroísmo corporativo”, descreve a reportagem.
No Brasil, a pressão também aparece. O Diário de Pernambuco reportou que empresas de tecnologia nacionais começam a adotar rotinas similares, disfarçadas sob o discurso de “autonomia e flexibilidade”. Em muitas delas, a prática vem acompanhada de metas agressivas e prazos cada vez menores.
Especialistas alertam para riscos de burnout e perda de produtividade
Para especialistas em saúde ocupacional, a tendência é alarmante. A psicóloga Patrícia Guimarães, especialista em comportamento organizacional, explica que jornadas prolongadas “reduzem a capacidade de concentração e aumentam o risco de burnout, ansiedade e falhas cognitivas”.
Estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que trabalhar mais de 55 horas por semana eleva em 35% o risco de derrame cerebral e em 17% o risco de doenças cardíacas. Além disso, empresas que forçam ritmos extremos tendem a perder talentos, gerar alta rotatividade e enfrentar custos com afastamentos médicos.
O pesquisador americano Bryan Robinson, da Forbes, reforça que o 9-9-6 “é uma ilusão de produtividade” — ele gera mais retrabalho, falhas e queda na qualidade das entregas. “A longo prazo, o cérebro simplesmente não aguenta esse nível de pressão constante”, afirma.
Cultura de sacrifício disfarçada de meritocracia
Para muitos analistas, o método 9-9-6 representa mais do que uma jornada: ele é um símbolo de cultura corporativa tóxica. Ao glorificar o cansaço como sinônimo de sucesso, ele transforma o descanso em culpa e o lazer em fraqueza.
Empresas chinesas chegaram a estampar frases como “O trabalho é a melhor forma de amar” em murais internos, e agora, segundo a InfoMoney, algumas startups ocidentais resgatam esse tipo de retórica — desta vez com slogans em inglês sobre “foco e disciplina”.
Mas especialistas lembram que o sucesso de empresas como Google, Microsoft e Nvidia, que investem em equilíbrio e inovação, mostra o oposto: produtividade não depende de exaustão, e sim de condições mentais saudáveis e planejamento inteligente.
O efeito colateral silencioso: desigualdade e exclusão
Outra crítica recorrente ao 9-9-6 é que ele exclui quem não pode se adaptar a essa carga, pais de família, mães solo, pessoas com limitações de saúde e trabalhadores com dupla jornada acabam ficando de fora do mercado.
Assim, o modelo reforça a ideia de que “apenas os incansáveis merecem sucesso”, perpetuando desigualdades e ambientes de trabalho nocivos.
No Brasil, advogados trabalhistas também apontam possíveis ilegalidades. A CLT prevê jornada máxima de 8 horas diárias e descanso semanal remunerado.
Qualquer regime que ultrapasse esse limite precisa de compensação formal e pagamento de horas extras. Caso contrário, a prática pode configurar infração trabalhista.
Resistência e busca por modelos mais humanos
Em resposta ao avanço da cultura 9-9-6, cresce o número de empresas que investem no direito à desconexão, conceito já reconhecido em países europeus e em debate no Congresso Nacional. A proposta prevê o direito de o trabalhador não ser cobrado fora do expediente, especialmente em regimes híbridos e remotos.
Companhias de tecnologia mais maduras também têm buscado alternativas, como semanas de quatro dias, metas flexíveis e programas de pausas obrigatórias. A lógica é simples: funcionários descansados produzem mais, erram menos e permanecem por mais tempo.
O avanço do 9-9-6 revela um dilema que atravessa fronteiras: até que ponto a obsessão por produtividade compensa o desgaste humano?
Em um cenário em que a tecnologia promete automatizar tudo, o maior risco talvez não seja a substituição por máquinas, mas o esgotamento de quem as programa.
A história mostra que modelos extremos sempre cobram seu preço — e, neste caso, ele vem em forma de cansaço crônico, adoecimento e perda de criatividade. A pergunta que fica é: quantas horas de trabalho valem uma vida saudável?