As locomotivas a diesel da RFFSA marcaram 50 anos de história no Brasil, puxaram milhões de toneladas e hoje sobrevivem em museus após a extinção da rede.
Em 1957, nascia a Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), criada para unificar dezenas de companhias ferroviárias regionais que até então operavam de forma fragmentada pelo Brasil. A nova estatal tinha como missão modernizar o transporte ferroviário, integrar regiões isoladas e transformar os trilhos em motor de desenvolvimento econômico.
No coração dessa transformação estavam as locomotivas a diesel-elétricas, que aos poucos substituíram as antigas máquinas a vapor. Mais potentes, econômicas e capazes de percorrer longas distâncias com menor manutenção, essas locomotivas foram o símbolo da modernização ferroviária brasileira.
Por quase 50 anos, até a extinção da RFFSA em 2007, elas puxaram milhões de toneladas de minério, grãos, combustíveis e produtos industriais, sustentando a industrialização e o crescimento econômico do país.
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Da fumaça do vapor à potência do diesel
Até os anos 1950, as ferrovias brasileiras ainda eram dominadas por locomotivas a vapor, dependentes de carvão e lenha. Esse modelo, além de caro e poluente, exigia grande quantidade de mão de obra para operação e manutenção.
Com a criação da RFFSA, o Brasil aderiu ao movimento global de transição para locomotivas diesel-elétricas, que combinavam motores a combustão e tração elétrica.
Fabricantes como General Electric (GE), General Motors (GM – EMD) e Alco passaram a fornecer modelos para a rede, que se tornaram presença constante nos trilhos nacionais.
Entre os ícones estavam locomotivas como a GE U20C, apelidada de “U-boat”, e as GM SD38 e SD40, que puxavam composições de até 100 vagões carregados de minério ou soja. Essas máquinas foram responsáveis por transformar o transporte ferroviário brasileiro em sinônimo de força e produtividade.
A espinha dorsal da economia
Durante décadas, as locomotivas da RFFSA foram a espinha dorsal do transporte de cargas pesadas no Brasil.
- No Sudeste, ligavam Minas Gerais ao Rio de Janeiro e a São Paulo, transportando milhões de toneladas de minério de ferro da Companhia Vale do Rio Doce (atual Vale) para os portos de exportação.
- No Sul, garantiam o escoamento de grãos, madeira e carvão para atender à indústria e ao mercado externo.
- No Nordeste, integravam polos de produção agrícola e abasteciam os centros urbanos em crescimento.
Relatórios da década de 1980 apontam que a RFFSA transportava, em média, cerca de 100 milhões de toneladas de cargas por ano, consolidando seu papel como um dos principais pilares logísticos do país.
Passageiros e memória afetiva
As locomotivas da RFFSA não eram apenas responsáveis pelo transporte de mercadorias. Milhões de brasileiros também tiveram suas vidas marcadas pelos trens de passageiros puxados por essas máquinas.
Dos tradicionais trens noturnos que ligavam São Paulo ao Rio de Janeiro até composições regionais que cruzavam o sertão nordestino, a RFFSA foi durante décadas a principal forma de deslocamento de longas distâncias.
Para muitos brasileiros, especialmente os mais velhos, a imagem da locomotiva a diesel puxando dezenas de vagões de passageiros é sinônimo de infância, viagens em família e do início da modernização do país.
O declínio e a extinção da RFFSA
A partir dos anos 1980, o modelo ferroviário brasileiro entrou em crise. A falta de investimentos em manutenção, a expansão rodoviária impulsionada pelo lobby do transporte de caminhões e a má gestão estatal levaram à perda de competitividade das ferrovias.
Em 1996, o governo federal iniciou o processo de privatização e concessão da malha ferroviária, repassando trechos da RFFSA a empresas privadas. Em 2007, a estatal foi oficialmente extinta.
Muitas das locomotivas que ainda rodavam foram incorporadas às concessionárias, mas centenas acabaram sucateadas ou abandonadas em pátios ferroviários. Algumas, no entanto, sobreviveram e foram preservadas em museus ferroviários espalhados pelo Brasil, como o Museu do Trem, em São Leopoldo (RS), e o Museu Ferroviário de Araraquara (SP).
Do trabalho pesado à memória cultural
Hoje, locomotivas da RFFSA estão expostas como patrimônio cultural e lembrança de uma era em que os trilhos eram sinônimo de progresso. Muitas estão em perfeito estado de preservação, funcionando em trens turísticos como a Maria Fumaça de Tiradentes (MG) ou o trem turístico de Morretes (PR), ainda que operem em rotas curtas e com fins turísticos.
Essas locomotivas são mais que peças de ferro e aço: representam o período em que o Brasil apostou nas ferrovias como motor do desenvolvimento. Elas contam a história de operários, engenheiros e comunidades inteiras que cresceram ao redor das linhas férreas.
O legado para o futuro
Com a crescente discussão sobre sustentabilidade e logística eficiente, as ferrovias voltaram à pauta do desenvolvimento nacional. Projetos como a Ferrovia Norte-Sul, a Ferrovia de Integração Oeste-Leste (FIOL) e a planejada Ferrogrão mostram que o transporte ferroviário ainda é vital para o Brasil.
As locomotivas modernas, muito mais potentes e limpas, são descendentes diretas daquelas máquinas da RFFSA. O legado de meio século dessas locomotivas está no know-how que abriu caminho para a expansão atual, mas também no alerta: sem manutenção e planejamento, a ferrovia pode perder espaço para outros modais.
De motor do crescimento a relíquia nacional
As locomotivas a diesel da RFFSA foram protagonistas de uma história que atravessou meio século. Puxaram milhões de toneladas de minério e grãos, transportaram milhões de passageiros e marcaram a memória de gerações.
Sua despedida, após a extinção da rede em 2007, foi também o fim de uma era em que os trilhos eram sinônimo de integração nacional.
Hoje, como peças de museu ou em trens turísticos, elas permanecem como símbolos de um Brasil que buscava se modernizar a cada apito de locomotiva. São lembranças de ferro e óleo diesel de um tempo em que a ferrovia era a linha mestra do progresso.