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Índia deixa de lado a ideia de moeda única do BRICS por estratégia mais ambiciosa: transformar a “rúpia global” em referência no comércio internacional sem depender do dólar

Escrito por Valdemar Medeiros
Publicado em 14/08/2025 às 16:20
Índia abandona ideia de moeda única do BRICS por estratégia mais ambiciosa: transformar a rúpia em referência no comércio internacional sem depender do dólar
Foto: Índia abandona ideia de moeda única do BRICS por estratégia mais ambiciosa: transformar a rúpia em referência no comércio internacional sem depender do dólar
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Índia abandona moeda comum do BRICS e aposta em acordos bilaterais com rúpia para reduzir o dólar e liderar nova ordem no comércio internacional.

Enquanto os olhos do mundo estavam voltados para a proposta de uma moeda única dos BRICS capaz de rivalizar com o dólar, a Índia discretamente deu um passo ousado — e talvez ainda mais eficaz: iniciou uma campanha sistemática para transformar sua própria moeda nacional, a rúpia, em instrumento global de comércio, por meio de acordos bilaterais de liquidação direta. O movimento não apenas esvazia as expectativas em torno de uma moeda comum do bloco, mas também evidencia uma mudança estratégica de rota por parte de um dos principais membros do BRICS.

Índia prioriza acordos em rúpia com outros países

A estratégia indiana é clara: usar a rúpia diretamente em transações internacionais, sem depender do dólar como moeda de conversão intermediária. Para isso, o governo e o Banco da Reserva da Índia (RBI) vêm firmando Memorandos de Entendimento (MoUs) com parceiros comerciais estratégicos.

O caso mais emblemático aconteceu com as Maldivas, quando em novembro de 2024 o RBI assinou um acordo com a Autoridade Monetária Maldiva para permitir a liquidação de transações comerciais diretamente em rúpias e rufiyaa, as moedas locais dos dois países.

Esse sistema opera fora da rede tradicional de conversões baseada no dólar, tornando as transações mais rápidas e baratas, além de aumentar a influência da moeda indiana na região.

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Segundo o governador adjunto do RBI, Sanjay Malhotra, a Índia já possui acordos operacionais semelhantes com os Emirados Árabes Unidos, e outros países da Ásia e da África estão em negociação para aderirem ao modelo. Esse avanço representa uma clara internacionalização da rúpia, com potencial de remodelar fluxos comerciais regionais e abalar a lógica tradicional de uso do dólar.

A moeda única do BRICS esfria — e a Índia toma outro caminho

Durante anos, o BRICS — bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — discutiu a criação de uma moeda própria para facilitar o comércio entre os membros e reduzir a dependência do dólar. Em 2023, chegaram a circular rumores sobre o lançamento da chamada “Unit”, uma moeda digital lastreada em uma cesta de ativos.

No entanto, a proposta jamais saiu do papel. Em julho de 2025, na cúpula do BRICS no Rio de Janeiro, nenhuma definição concreta sobre a moeda comum foi anunciada. O foco dos líderes recaiu sobre o BRICS Pay — uma rede de pagamentos descentralizada — e sobre acordos bilaterais em moedas locais, como os que a Índia já vem implementando.

A escolha de Nova Délhi por uma rota própria indica que a confiança em uma moeda única do bloco está longe de ser consenso. Para a Índia, com sua economia robusta e foco em política externa ativa, esperar por um projeto coletivo pode ser mais custoso do que agir de forma independente.

Essa movimentação contrasta fortemente com a postura de países como o Brasil, que ainda apostam na diplomacia multilateral como ferramenta principal de transformação econômica. Já a Índia, mais pragmática, acelera sua estratégia unilateral com foco em resultados imediatos.

Como funcionam os acordos de liquidação bilateral

Na prática, os acordos de liquidação bilateral permitem que dois países estabeleçam um mecanismo institucionalizado para realizar pagamentos e recebimentos diretamente em suas respectivas moedas nacionais, sem a necessidade de conversão ao dólar ou euro.

Por exemplo, uma empresa nas Maldivas pode importar arroz indiano e pagar em rufiyaa, que será automaticamente convertida em rúpia indiana pelo banco central local, com compensação autorizada pelo RBI. Isso reduz a exposição cambial, evita taxas extras de conversão, e também diminui o risco de sanções ou bloqueios em sistemas dominados por potências ocidentais, como o SWIFT.

Esse modelo também é tecnicamente mais viável do que uma moeda multilateral, pois exige menos infraestrutura internacional e depende apenas da confiança entre os dois países envolvidos. Ou seja: mais fácil, mais rápido e mais estratégico no atual cenário de disputas econômicas globais.

Por que a Índia prefere promover a “rúpia global”

A decisão da Índia de acelerar a internacionalização da rúpia se baseia em quatro pilares principais:

  • Autonomia monetária: ao usar a própria moeda, o país evita pressões externas causadas pela flutuação do dólar ou do euro, além de preservar sua política monetária interna.
  • Redução de custos transacionais: eliminar o dólar como moeda intermediária torna o comércio mais eficiente e menos vulnerável a sanções e taxas cambiais, especialmente em tempos de tensões geopolíticas.
  • Projeção de poder geoeconômico: ao espalhar o uso da rúpia, a Índia fortalece sua influência política e comercial sobre vizinhos e parceiros. Isso também amplia o escopo de atuação de empresas indianas em mercados estrangeiros.
  • Posicionamento estratégico frente à China: enquanto o yuan tenta se consolidar como alternativa internacional ao dólar, a Índia busca um papel semelhante — porém com foco em acordos bilaterais em vez de redes multilaterais ou criptoativos estatais.

A reação dos demais países do BRICS

O movimento da Índia tem sido acompanhado com cautela pelos outros membros do BRICS. A China, por exemplo, segue promovendo o uso do e‑yuan em transações com países africanos e asiáticos, embora ainda de forma experimental. Já a Rússia, diante das sanções internacionais, intensificou o uso do rublo com aliados regionais, mas sem grande impacto global.

O Brasil, por sua vez, ainda não adotou nenhum programa robusto de internacionalização do real. Autoridades do Banco Central afirmam que a infraestrutura cambial brasileira precisa evoluir antes de qualquer movimento nesse sentido. Isso posiciona a Índia como um dos únicos países do BRICS a executar, de fato, uma estratégia sistemática de internacionalização monetária, não apenas discursiva.

Os desafios de emplacar a rúpia como referência

Apesar dos avanços, o plano indiano enfrenta obstáculos importantes. A rúpia ainda não é conversível livremente como o dólar, o euro ou mesmo o yuan. Além disso, a aceitação internacional da moeda indiana requer confiança macroeconômica, estabilidade política e liquidez nos mercados.

Outro desafio é que, sem um sistema amplo de compensação multilateral como o SWIFT, os acordos bilaterais exigem constante negociação e manutenção política entre os países, o que pode limitar a escalabilidade da estratégia.

Ainda assim, a Índia aposta que o ganho de agilidade, o baixo custo e a ausência de interferência externa serão atrativos suficientes para países em desenvolvimento que também buscam escapar da dolarização.

O dólar resiste, mas o mapa global está mudando

É importante destacar que, segundo o próprio Banco Central do Brasil, não existe hoje um volume suficiente de reservas em moedas dos BRICS que permita substituir o dólar no curto prazo. O mesmo vale para a rúpia: sua fatia nas reservas cambiais globais ainda é modesta.

No entanto, o que está em jogo aqui não é a substituição imediata do dólar, mas sim o surgimento de ilhas de comércio descentralizado, zonas econômicas regionais onde moedas locais ganham protagonismo. A Índia está liderando essa transformação com pragmatismo e foco, enquanto outras potências do BRICS ainda hesitam entre a cooperação e a autonomia.

Se conseguir consolidar seu modelo, a Índia poderá pavimentar o caminho não apenas para uma maior soberania financeira, mas também para uma nova ordem comercial baseada em moedas locais e acordos diretos — algo que pode mudar profundamente a lógica das relações internacionais nas próximas décadas.

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Valdemar Medeiros

Formado em Jornalismo e Marketing, é autor de mais de 20 mil artigos que já alcançaram milhões de leitores no Brasil e no exterior. Já escreveu para marcas e veículos como 99, Natura, O Boticário, CPG – Click Petróleo e Gás, Agência Raccon e outros. Especialista em Indústria Automotiva, Tecnologia, Carreiras (empregabilidade e cursos), Economia e outros temas. Contato e sugestões de pauta: valdemarmedeiros4@gmail.com. Não aceitamos currículos!

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