Decisão judicial envolvendo transferência duplicada reforça que manter valores recebidos por engano pode gerar não só devolução, mas também indenização. Caso destaca princípios de boa-fé e responsabilidade nas transações financeiras.
Um erro em transferência bancária rendeu condenação exemplar no Tribunal de Justiça de Mato Grosso.
A Segunda Câmara de Direito Privado ordenou a devolução de R$ 50 mil enviados em duplicidade e fixou R$ 10 mil por dano moral após o recebedor se recusar a restituir o montante.
Embora o episódio costume ser associado ao Pix, os desembargadores analisaram uma transferência tradicional e consolidaram parâmetros que alcançam, por analogia, operações instantâneas com dinâmica semelhante.
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Por que a Justiça determinou a devolução
As partes tinham um contrato de empréstimo que autorizava pagamento por transferência.
Por falha de comunicação e problema operacional, a parcela foi repassada duas vezes ao credor, a partir de contas diferentes do devedor.
A documentação reunida no processo — extratos bancários, comprovantes e ata notarial de conversas por aplicativo — demonstrou a duplicidade do crédito e a ciência do recebedor sobre o equívoco.
Ainda assim, ele negou a devolução.
Na defesa, o beneficiário alegou que reteria o valor para “compensar” outra dívida.
O colegiado afastou a tese por falta de previsão contratual ou base legal.
A relatoria foi direta ao afirmar que manter consigo quantia recebida sem causa legítima viola a boa-fé objetiva e configura enriquecimento sem causa.
Em um dos trechos citados no julgamento, a desembargadora pontuou que, ao reter o dinheiro duplicado sem autorização válida, o comportamento do recebedor destoou do que fora pactuado.
O que pesou na caracterização do dano moral
A condenação não se apoiou apenas no erro de transferência.
O tribunal levou em conta o comportamento posterior do recebedor.
Para os desembargadores, o autor foi submetido a constrangimento e desgaste ao ter que acionar a Justiça para reaver quantia sabidamente indevida.
Em linguagem clara, o voto destacou a angústia e a frustração decorrentes da resistência prolongada, elementos que ultrapassam “meros aborrecimentos” e legitimam a reparação extrapatrimonial.
Ao arbitrar R$ 10 mil por dano moral, a turma observou critérios de proporcionalidade, o porte da quantia envolvida, a recusa injustificada e a função pedagógica da condenação — desestimular condutas semelhantes.
Como ficaram correção e juros
A ordem de restituição do principal veio acompanhada de atualização monetária e encargos.
O colegiado determinou a devolução dos R$ 50 mil corrigidos pelo IPCA e com incidência de juros pela Selic desde a data do erro.
Para a indenização por dano moral, a atualização ocorrerá a partir da citação, nos termos usuais fixados pela jurisprudência.
Assim, a recomposição financeira considera não apenas o valor nominal, mas o efeito do tempo e o custo de oportunidade do dinheiro retido.
Provas que fizeram a diferença
A robustez do conjunto documental foi central para o desfecho.
Os extratos e comprovantes balizaram a cronologia da duplicidade.
A ata notarial de mensagens registrou a comunicação do erro, o pedido de devolução e a negativa subsequente.
O contrato delimitou o que estava autorizado entre as partes.
Essa combinação eliminou dúvidas sobre a origem do crédito e evidenciou que a tentativa de “abater” dívida diversa destoava do pacto original.
E o que isso tem a ver com Pix
Mesmo anterior à massificação do Pix, o caso oferece pistas práticas para situações cotidianas envolvendo transferências instantâneas.
A diretriz é simples: quem recebe valor por engano tem o dever de restituir.
A recusa sem base plausível pode gerar responsabilização civil, com devolução do principal e, conforme as circunstâncias, indenização moral.
Em operações Pix, há ainda o Mecanismo Especial de Devolução (MED), ferramenta do Banco Central para hipóteses com indícios de fraude, golpe ou crime.
Embora não tenha sido acionado no processo analisado, o MED exemplifica uma via administrativa paralela que pode ser combinada com a preservação de provas, o contato com a instituição financeira e, se necessário, a judicialização.
Linha mestra: boa-fé e vedação ao enriquecimento sem causa
A decisão reafirma princípios clássicos aplicáveis às relações obrigacionais, inclusive em ambientes digitais.
Recebido o que não é devido, impõe-se devolver.
Compensações unilaterais sem previsão contratual não convalidam a retenção.
A boa-fé objetiva serve de norte para a interpretação do pacto e para conter desvios de finalidade em transações bancárias, seja em transferências tradicionais, seja em pagamentos instantâneos.
Efeitos práticos para consumidores e credores
O entendimento sinaliza que a Justiça reprova a manutenção de valores alheios quando há prova clara do equívoco e comunicação tempestiva.
Para quem transfere por engano, a recomendação é agir rapidamente: registrar o ocorrido junto ao banco, documentar as tentativas de contato, guardar extratos e comprovantes, e buscar orientação jurídica se a devolução não ocorrer de forma espontânea.
Para quem recebe sem querer, a postura correta é restituir sem demora, mitigando riscos de litígio e de danos extrapatrimoniais.
O precedente e seus contornos
Trata-se de decisão unânime da Segunda Câmara de Direito Privado do TJMT, sob relatoria de Maria Helena Gargaglione Póvoas, proferida em sessão colegiada e divulgada oficialmente no portal do tribunal.
O número do processo — 1022601-23.2021.8.11.0015 — permite identificar a ação, em que se discutiu depósito em duplicidade no contexto de contrato de empréstimo.
A turma consignou a incidência de Selic e IPCA com marcos distintos para cada parcela, reforçando a atenção aos critérios técnicos de atualização.
Curiosidade útil para o dia a dia financeiro
Casos como esse ajudam a entender a engrenagem jurídica por trás de erros de transferência.
Para além do termo “Pix”, popular no vocabulário financeiro, a lógica decisória não muda: comprovado o engano e a recusa sem fundamento, o Judiciário tende a ordenar a devolução e, se houver repercussão extrapatrimonial relevante, a compensação moral.
Em outras palavras, a tecnologia de pagamento não afasta o núcleo da obrigação de não reter o que não é seu.
Se você percebesse que um valor saiu por engano da sua conta e entrou na de outra pessoa, qual seria seu primeiro movimento: acionar o banco, reunir provas do contato com o recebedor ou iniciar logo uma orientação jurídica para formalizar o pedido de devolução?