Restrição a apenas um carro PCD por pessoa pode cortar bilhões em gastos públicos, mas ameaça mercado automotivo e levanta críticas de exclusão.
O Brasil construiu, ao longo das últimas duas décadas, um dos maiores programas de incentivo fiscal para pessoas com deficiência (PCD) no setor automotivo. O desconto de IPI e a isenção de ICMS tornaram-se vitais não apenas para garantir acessibilidade, mas também para movimentar o mercado de veículos de entrada. Só em 2024, as isenções concedidas somaram mais de R$ 6 bilhões em renúncia fiscal, segundo estimativas da Receita Federal. Agora, esse benefício pode ser reescrito. Em Brasília, discute-se limitar a compra para apenas um carro por pessoa, regra que mudaria radicalmente a lógica atual do programa.
Como funciona hoje a compra de carro com isenção PCD
Atualmente, uma pessoa com deficiência pode solicitar isenção de IPI para adquirir um carro até o teto estabelecido em lei. A última atualização fixou o valor máximo em torno de R$ 120 mil, após anos de pressões das montadoras e associações.
A regra ainda permite que o beneficiário volte a comprar um novo veículo com isenção a cada três anos. Esse intervalo mais curto foi visto como uma conquista, já que por muitos anos a lei só permitia troca a cada cinco.
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Na prática, a cada três anos, milhares de carros entram no mercado de seminovos PCD, com preços competitivos e rodagem baixa, fortalecendo um mercado paralelo que atrai até quem não se enquadra na política pública.
O argumento do governo: conter fraudes e ajustar contas
O estopim para a discussão veio de relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU), que apontaram possíveis distorções e uso indevido do benefício.
Casos de famílias adquirindo múltiplos veículos em nome de um único beneficiário se tornaram alvo de investigações. A proposta em estudo prevê que a isenção seja concedida apenas uma vez por pessoa, sem a possibilidade de repetição.
A equipe econômica do governo calcula que essa mudança poderia reduzir em até R$ 2 bilhões por ano o gasto em renúncias fiscais, número significativo em um momento de ajuste nas contas públicas e busca por aumento de arrecadação com a Reforma Tributária.
O impacto direto no setor automotivo
Se para o governo a medida representa economia, para as montadoras e concessionárias o cenário é preocupante. Estimativas da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores) mostram que cerca de 30% das vendas de carros compactos e sedãs de entrada no Brasil vêm do segmento PCD. A limitação de compra única reduziria drasticamente esse fluxo constante de consumidores.
As empresas alertam que o mercado de carros populares, já pressionado pela queda da renda e pelo aumento da taxa de juros, pode sofrer uma retração ainda maior, com impacto na produção e no emprego.
O risco de desabastecimento no mercado de seminovos
Outra consequência direta seria no mercado de usados. Hoje, a cada ciclo de três anos, milhares de veículos PCD são revendidos, alimentando o setor de seminovos com carros em bom estado e preços mais acessíveis. A nova regra, se aprovada, quebraria esse ciclo.
Especialistas do setor preveem que os preços de carros seminovos podem subir, especialmente na faixa abaixo dos R$ 70 mil, justamente a mais procurada pela classe média que não consegue adquirir um zero quilômetro. O consumidor comum, que já enfrenta um dos maiores custos de veículos do mundo em relação à renda, pode ser ainda mais penalizado.
Entidades ligadas às pessoas com deficiência veem a medida como um retrocesso. Para elas, a compra de um carro adaptado não é luxo, mas necessidade. Muitas vezes, o veículo precisa ser renovado por questões de acessibilidade, adaptação de equipamentos e até segurança do usuário.
“Não se trata apenas de comprar um carro barato, mas de garantir a mobilidade de quem depende de adaptações caras e específicas. Limitar a isenção a apenas uma vez é excluir milhares de pessoas”, afirmou em nota a Federação Brasileira das Associações de Pessoas com Deficiência.
O que pode acontecer em 2026
A discussão está nos corredores do Congresso, mas enfrenta forte resistência. Parlamentares da chamada “bancada automotiva” prometem trabalhar contra a proposta, alegando que ela pode gerar uma crise de vendas no setor e desemprego em concessionárias. Já a equipe econômica argumenta que é impossível manter um programa tão caro sem revisões.
Se for adiante, 2026 pode marcar um divisor de águas: de um lado, o alívio das contas públicas; do outro, o fim de um ciclo de renovação de frota que ajudou a sustentar o mercado automotivo por anos. A disputa promete ser intensa, e o consumidor — especialmente o público PCD — pode acabar no centro dessa batalha.
No fim, a pergunta que paira é simples: a política de isenção para carros PCD vai continuar sendo um pilar da indústria ou será desmontada em nome do ajuste fiscal? A resposta pode definir não apenas o futuro de milhares de motoristas com deficiência, mas também o destino de uma fatia significativa da indústria automotiva brasileira.