A Eletrobras, maior elétrica da América do Sul, busca consolidar-se após a privatização de 2022. Com cortes de custos, venda de ativos e lucro recorde, ainda enfrenta riscos políticos e pressão do mercado
A Eletrobras, maior concessionária de energia elétrica da América do Sul, atravessa um processo de transformação que simboliza os desafios da privatização no Brasil.
Com hidrelétricas e linhas de transmissão capazes de abastecer até 75 milhões de lares, a companhia que já foi sinônimo do “milagre econômico” brasileiro hoje se apresenta como um estudo de caso sobre as dificuldades – e oportunidades – de desatar o nó da burocracia estatal.
O desafio de virar a página da estatização
Desde que o governo federal abriu mão do controle majoritário em 2022, a empresa vive uma fase de reestruturação intensa.
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A nova administração, comandada pelo ex-CEO da Petrobras e ex-CFO do Banco do Brasil, Ivan Monteiro, e por executivos oriundos do setor financeiro e de energia, busca modernizar processos, reduzir custos e devolver previsibilidade a um negócio que acumulava, ao longo das décadas, ativos tão improváveis quanto hospitais, cinemas, hotéis e até um aeroporto.
Essa herança explica parte da ineficiência que marcou a trajetória recente da estatal. As unidades operavam quase isoladas, sem integração real com a holding, o que comprometia resultados e atrasava a consolidação de balanços.
Mas sinais de recuperação começam a surgir. Após anunciar crescimento robusto de receita em agosto de 2025 e pagar dividendos atrativos, a companhia viu suas ações ultrapassarem o preço de oferta da privatização, fixado em R$ 42.
“Imagine administrar uma empresa como esta logo após a privatização, com investidores exigindo resultados imediatos”, afirmou Monteiro em entrevista. “O que importa é a direção. Estamos mais saudáveis do que antes e nossos acionistas compreendem o horizonte de longo prazo.”
Reestruturação e corte de custos
Desde setembro de 2023, Monteiro lidera uma estratégia agressiva de redução de gastos. De acordo com os relatórios financeiros, os custos operacionais caíram 18% e o quadro de funcionários foi reduzido em 17%. Parte dos ativos considerados não estratégicos foi vendida, como usinas termelétricas a gás repassadas para a Ambar Energia.
A mudança também é cultural: a companhia trocou o antigo prédio de escritórios no Rio de Janeiro por uma sede moderna, com espaços compartilhados, na tentativa de enterrar o estilo hierárquico e burocrático herdado do período estatal.
O CFO Eduardo Haiama, ex-Equatorial Energia, não esconde que novos desinvestimentos virão. “Se dependesse de mim, venderíamos tudo”, disse ele, destacando o interesse em se desfazer de participações minoritárias avaliadas em mais de R$ 30 bilhões.
Ativos incomuns e herança histórica
Criada em 1962, a Eletrobras foi motor do crescimento brasileiro entre as décadas de 1960 e 1970, quando o país chegou a registrar expansão anual acima de 10%. Para erguer hidrelétricas como Furnas ou o Complexo Paulo Afonso, construiu cidades inteiras. Essa epopeia explica seu patrimônio inusitado.
Em São José da Barra (MG), por exemplo, a companhia ainda é dona de aeroporto, hotéis e um cinema. Um dos hotéis e o aeroporto hoje são usados pela Marinha do Brasil, mas os demais imóveis estão em processo de venda.
Já o hospital erguido na Bahia para apoiar a obra do Complexo Paulo Afonso foi doado, em 2024, a uma universidade local.
O peso da política e o olhar dos investidores
Apesar dos avanços, a saída da sombra estatal continua incompleta. O governo federal ainda detém cerca de 45% das ações, com direito especial de voto que mantém influência relevante sobre a companhia.
Recentemente, a gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ampliou sua presença no conselho, aumentando a percepção de risco político.
“A Eletrobras ainda não é tratada pelo mercado como uma empresa privada”, analisa Vitor Sousa, da Genial Investimentos.
“Isso só deve ocorrer se houver queda nos juros, manutenção da estratégia de desestatização e menor interferência política.”
No ano fiscal de 2024, a companhia registrou lucro líquido de R$ 10,4 bilhões, contra R$ 3,6 bilhões em 2022, ano da privatização. Ainda assim, o pagamento de dividendos – R$ 4 bilhões no último exercício – não deve se repetir com a mesma intensidade, segundo Monteiro.
O executivo reforça que o equilíbrio entre retorno imediato aos acionistas e investimentos de longo prazo será crucial.
Privatizações na região e a disputa de modelos
A experiência da Eletrobras é acompanhada de perto por vizinhos latino-americanos. Na Argentina, o presidente Javier Milei promete uma ampla agenda de privatizações.
No Brasil, o governador paulista Tarcísio de Freitas, cotado para disputar a presidência em 2026, já avançou com a venda da Sabesp, maior companhia de saneamento do país.
“É um processo longo e cheio de riscos”, avalia Alexandre Sant’Anna, da ARX Capital Management. “A Eletrobras ficou mais enxuta e transparente, mas ainda há muito a fazer.”
Energia renovável e novas apostas
Ao mesmo tempo, a concessionária tenta se adaptar a um mercado em rápida transformação. A explosão da energia solar e eólica pressiona os preços e altera a lógica de contratos de longo prazo. A empresa calcula que até 43% de sua energia disponível em 2027 ainda não está contratada, apostando em preços mais altos no futuro.
Também busca modernizar sua estrutura comercial e investe em tecnologia. O destaque é a plataforma Atmos, ferramenta meteorológica desenvolvida internamente para prever demanda e otimizar a manutenção de usinas.
“Nosso trabalho não é só modernizar a infraestrutura, mas criar oportunidades futuras”, explicou o vice-presidente Juliano Dantas.
Um futuro em disputa
O destino da Eletrobras permanece em aberto. Entre a pressão de Brasília, a necessidade de entregar dividendos e os desafios de um setor em mudança acelerada, a companhia tenta provar que pode ser uma gigante eficiente no mercado privado.
“Estamos comprometidos em executar tudo o que discutimos: redução de custos, transparência e maturidade”, disse Monteiro. “Ainda é um processo, mas estamos no caminho certo.”