Com endividamento recorde e tribunais aceitando medidas cada vez mais duras contra inadimplentes, surge uma polêmica inédita: é possível que um juiz autorize a penhora do seu pet? Entenda o que diz o Código Civil, o CPC e os especialistas sobre o assunto
O Brasil atravessa um cenário de endividamento crescente. Milhões de famílias enfrentam ações judiciais por dívidas de cartão de crédito, aluguéis, financiamentos e empréstimos bancários. Diante disso, o Poder Judiciário tem adotado medidas chamadas “cautelares atípicas”, que visam pressionar o devedor a pagar o que deve — como a suspensão da CNH, o bloqueio de passaportes e até a restrição de cartões de crédito.
Mas uma nova e polêmica discussão vem ganhando espaço: e se o credor pedir a penhora do seu animal de estimação?
Penhorar um pet: o impasse entre lei, ética e afeto
A hipótese, embora pareça absurda, tem base jurídica. O artigo 82 do Código Civil classifica os animais como bens móveis, o que, em tese, permitiria sua penhora. Além disso, eles não estão listados entre os bens impenhoráveis no artigo 833 do Código de Processo Civil (CPC).
Contudo, o caso não é tão simples. Segundo o jurista Marcelo Kokke, procurador federal da Advocacia-Geral da União (AGU) e especialista em Direito Constitucional, essa questão revela um conflito ético e moral que ultrapassa o campo jurídico.
Kokke explica que, do ponto de vista econômico, alguns animais possuem alto valor de mercado — um cão Mastim Tibetano pode ultrapassar R$ 1 milhão, e um Lulu da Pomerânia chega a R$ 10 mil. Tecnicamente, portanto, eles poderiam ser considerados produtos ou bens de consumo.
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Contudo, quando há vínculo emocional e familiar — como ocorre com a maioria dos pets —, a jurisprudência tem caminhado para reconhecer a impenhorabilidade, inserindo o animal no que se chama de “família multiespécie”.
Animais com valor de afeto: o que protege seu pet da penhora
A ideia de “família multiespécie” parte do reconhecimento de que animais de estimação ocupam um papel afetivo e psíquico na vida humana, contribuindo diretamente para o bem-estar emocional.
Segundo Kokke, “a presença do pet está ligada ao direito à integridade psíquica, à harmonia espiritual e ao convívio familiar saudável”. Por isso, a penhora de um animal com vínculo afetivo seria violação ao direito da personalidade, algo incompatível com a dignidade humana e animal.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconheceu os animais como seres sencientes, capazes de sentir dor e emoção, reforçando a visão de que pets não devem ser tratados como simples objetos de penhora.
Ainda assim, há exceções: rebanhos, gados e animais de criação comercial podem ser penhorados, pois não possuem relação afetiva direta com seus donos. Da mesma forma, animais à venda em pet shops podem ser considerados bens penhoráveis, já que há intuito mercantil, e não convivência familiar.
Falta de lei específica deixa decisões nas mãos dos juízes
A ausência de uma norma clara faz com que o tema dependa do entendimento de cada magistrado. Na prática, caberia ao dono do animal provar o vínculo afetivo e familiar para evitar a penhora.
O texto, publicado originalmente por O Fator, destaca que a Lei nº 14.064/2020 tornou os maus-tratos contra cães e gatos mais graves do que contra outros animais, criando, assim, categorias de proteção diferentes.
Essa distinção abre margem para discussões: um cavalo, um porquinho ou uma ave exótica teriam o mesmo direito de impenhorabilidade que um cachorro? E o que dizer de um peixe raro de aquário, cujo dono alega apego emocional?
Para Kokke, o ideal seria uma lei específica sobre a impenhorabilidade de animais de estimação, evitando que a questão fique sujeita à interpretação individual dos tribunais.
A linha tênue entre o afeto e a propriedade
O debate sobre a penhora de pets expõe o paradoxo entre o afeto e o direito de propriedade. O animal pode ser comprado, vendido e até herdado, mas também pode ser parte essencial da vida emocional de alguém.
Enquanto a legislação não avança, o entendimento predominante é que somente animais com vínculo emocional comprovado são impenhoráveis, e os demais, com função comercial, podem ser usados para saldar dívidas.
Assim, se um dia o credor bater à sua porta, o seu carro ou imóvel podem ser bloqueados — mas, pelo menos por enquanto, seu cachorro continua protegido pelo amor que o transforma em família.
Fonte: artigo publicado por O Fator, com base em texto de Marcelo Kokke, procurador federal da AGU e coordenador nacional do IBAMA.
E você, o que pensa sobre isso? Acredita que o Código Civil deveria ser atualizado para reconhecer todos os animais de estimação como membros da família, tornando sua penhora ilegal em qualquer circunstância, ou entende que, diante do aumento das dívidas e da necessidade de garantir os direitos dos credores, alguns casos específicos poderiam justificar essa medida extrema?