Com R$ 3,5 trilhões em PIB, São Paulo deixou para trás até países inteiros. Mas o que explica essa ascensão meteórica em menos de dois séculos?
O Estado de São Paulo, hoje responsável por quase um terço da economia brasileira, ostenta um Produto Interno Bruto (PIB) de R$ 3,5 trilhões — superior ao da Argentina. Mas a realidade atual está muito distante de seu passado colonial. No século XIX, a região era vista como uma província secundária, pobre em arrecadação, pouco povoada e sem grande relevância política.
Em 1872, quando foi realizado o primeiro censo brasileiro, a capital paulista tinha apenas 30 mil habitantes. No mesmo ano, o Rio de Janeiro, então capital do Império, contava com cerca de 270 mil moradores. O contraste populacional traduzia também a distância entre as duas regiões em termos de influência. A ascensão de São Paulo nas décadas seguintes, no entanto, se tornaria um dos casos mais impressionantes de transformação econômica no mundo, segundo o historiador Rafael Cariello.
O peso da geografia e o desafio logístico da Serra do Mar
Boa parte do atraso inicial de São Paulo era explicado por sua geografia. A Serra do Mar funcionava como uma barreira natural entre o litoral e o interior do Estado. A produção agrícola paulista — mesmo beneficiada por terras férteis — tinha dificuldades para escoar seus produtos até o porto de Santos. O transporte dependia de trilhas indígenas ou estradas precárias, como a sinuosa Calçada do Lorena, inaugurada em 1792, com mais de 130 curvas ao longo de 50 quilômetros.
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Durante décadas, o escoamento da produção foi feito em tropas de mulas. Mas o custo logístico era tão elevado que inviabilizava a ampliação da produção para áreas mais afastadas. O “combustível” das mulas era o milho, um insumo caro, o que limitava o avanço do café — principal commodity do século XIX — ao Vale do Paraíba, mais próximo do litoral.
A mudança começou com uma decisão institucional: em 1834, uma reforma constitucional descentralizou parte do poder imperial, permitindo às províncias criar assembleias legislativas. São Paulo passou a investir seus próprios recursos na infraestrutura viária, por meio de pedágios. O dinheiro arrecadado serviu para abrir estradas mais modernas e rápidas. O ponto de virada viria com a construção da Estrada da Maioridade, em 1846, que ampliou a capacidade de transporte entre o interior e o litoral.
A chegada da ferrovia e o salto do café
Apesar das melhorias nas estradas, foi apenas em 1867 que a logística de transporte paulista se revolucionou de forma definitiva, com a inauguração da São Paulo Railway Company. Financiada por capital inglês e por barões do café, a ferrovia ligava a capital até Jundiaí e, de lá, ao porto de Santos. Com isso, a produção de café pôde avançar rapidamente para o interior, alcançando cidades como Campinas, Piracicaba, Limeira e Rio Claro.
Na mesma época, o consumo de café explodia nos Estados Unidos e na Europa, garantindo mercado para a crescente produção paulista. As exportações aumentaram vertiginosamente, e com elas cresceu também o volume de capitais circulando pelo Estado. O café não apenas irrigava a economia rural, mas também abria espaço para o surgimento de bancos, corretoras e outros instrumentos de crédito.
Escravidão, imigração e o nascimento da indústria
Em 1850, o Brasil proibiu oficialmente o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, após forte pressão da Inglaterra. A substituição da mão de obra escrava se deu principalmente por meio da imigração europeia, em especial de italianos, espanhóis e portugueses. Para São Paulo, a chegada desses imigrantes teve dupla função: manter a produção cafeeira e impulsionar o surgimento de uma classe urbana que passou a consumir e produzir bens manufaturados.
Entre o final do século XIX e a década de 1970, mais de 3 milhões de imigrantes passaram pela antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás. Esses trabalhadores não apenas ocuparam vagas no campo, mas também ajudaram a fundar uma economia urbana e industrial, criando pequenas fábricas, comércios e ampliando o mercado consumidor da capital e das cidades do interior.
A imigração também foi usada como instrumento político. Muitos dos governantes paulistas da época acreditavam que “embranquecer” a população era sinônimo de progresso. Essa ideologia racista, baseada em teorias eugenistas do século XIX, ajudou a moldar o perfil demográfico e social do Estado, privilegiando europeus e dificultando a integração da população negra e indígena na economia formal.
A crise de 1929 e a virada industrial
Mesmo com a força do café, São Paulo ainda era uma economia predominantemente agrícola até o final da década de 1920. Mas a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, desorganizou o comércio internacional e reduziu a capacidade do Brasil de importar produtos industrializados. Foi nesse contexto que a indústria paulista ganhou novo impulso.
Já existia uma base industrial incipiente, fruto do capital acumulado pelo café e da crescente demanda urbana. Com as restrições às importações, essas fábricas se expandiram rapidamente. A política de substituição de importações adotada por Getúlio Vargas a partir de 1930 consolidou esse processo. A indústria paulista passou a produzir bens antes importados — de roupas e alimentos a automóveis e eletrodomésticos.
A partir da década de 1970, São Paulo passou a diversificar sua economia ainda mais. O café perdeu espaço para outros setores: a indústria automobilística, a produção de petróleo, os serviços financeiros e, mais tarde, a tecnologia da informação. Um plano de erradicação de cafezais foi implantado, e a economia paulista se reposicionou em direção à modernidade.
O peso simbólico da identidade paulista
Para alguns estudiosos, como a cientista política Elizabeth Balbachevsky, o sucesso paulista se deve também a uma herança institucional menos marcada pelo patrimonialismo, em comparação a outras regiões do país. Segundo ela, o relativo desinteresse da Coroa portuguesa por São Paulo teria protegido suas instituições de uma colonização extrativista, permitindo o desenvolvimento de uma lógica mais autônoma e capitalista.
Essa interpretação, porém, é contestada por pesquisadores como Jessé Souza. Em sua análise, o que realmente diferenciou São Paulo foi sua capacidade de construir uma narrativa simbólica de superioridade. Após a derrota do movimento constitucionalista de 1932, a elite paulista percebeu que precisava dominar não apenas a economia, mas também o imaginário nacional.
“São Paulo construiu sua identidade como se fosse os Estados Unidos do Brasil”, afirma Souza. “A elite local repaginou o escravismo com linguagem de modernidade, moralidade e meritocracia. Criou a ideia de que São Paulo é uma Europa dentro da África.”
Segundo ele, universidades como a USP, o Instituto Histórico e Geográfico e os principais veículos de imprensa foram usados como instrumentos para consolidar essa narrativa. O objetivo era convencer o restante do país — especialmente o Nordeste — de que apenas São Paulo tinha capacidade técnica e moral para liderar a nação.
Essa construção simbólica, reforçada por mais de um século de discurso hegemônico, ajudou a consolidar o Estado não apenas como centro econômico, mas como polo de poder político e cultural. O resultado é visível até hoje: São Paulo segue como a locomotiva do Brasil, mas carrega também as contradições e desigualdades históricas de um modelo de desenvolvimento profundamente excludente.