A rápida ascensão da China como potência elétrica desafia petroestados, altera fluxos de comércio e reposiciona cadeias globais de energia, tecnologia e emissões de carbono, inaugurando uma nova era de disputas em torno da eletrificação.
A China consolidou, em poucos anos, uma posição inédita na ordem energética global: tornou-se um “eletroestado”, ancorando poder econômico e geopolítico em eletricidade barata, cadeias de suprimentos de tecnologia limpa e uma política industrial agressiva.
Essa guinada não nasceu de altruísmo climático, mas de cálculo estratégico para reduzir vulnerabilidades em petróleo e gás, ao mesmo tempo em que projeta influência por meio de equipamentos, padrões e finanças ligados à eletrificação.
O movimento já se traduz em emissões menores em 2025 e em pressão direta sobre o modelo de negócios de petroestados.
-
Patentes em xeque, Brasil pode suspender direitos de remédios e softwares dos EUA em retaliação ao tarifaço de 50% de Trump
-
Sem licitação, Brasil fecha acordos de cerca de R$ 3,17 bilhões com empresa francesa para ‘destravar’ o submarino nuclear Álvaro Alberto
-
3 ações para iniciante: Luiz Barsi Filho fala que dividendo depende da base acionária e da disciplina de acumular ações ao longo de décadas não do preço momentâneo da ação
-
Concorrência entre iFood, 99Food, Rappi e Keeta após greve nacional faz entregadores terem aumentos de até 50% nos ganhos em 2025
Do petróleo aos elétrons: a guinada estratégica
A mudança vem de uma década de planejamento estatal.
Em 2015, o governo lançou o programa Made in China 2025 para elevar a manufatura de alta tecnologia e reduzir dependências externas em setores críticos.
O eixo escolhido foi a eletrificação em larga escala, com expansão coordenada de eólica, solar, baterias e veículos elétricos, apoiada por metas industriais e crédito público.
A prioridade foi segurança energética e tecnológica, não metas morais de carbono.
O que os dados mostram: geração limpa e emissões
Os números recentes ajudam a dimensionar a virada.
Em abril de 2025, a participação combinada de eólica e solar chegou a 26% da eletricidade gerada no país, um recorde mensal.
No ano de 2024, a fatia anual dessas duas fontes foi de 18%, reforçando uma trajetória de crescimento acelerado.
Enquanto isso, 38% da eletricidade total veio de fontes de baixo carbono.
A dinâmica contribuiu para uma queda de 1% nas emissões de CO₂ no primeiro semestre de 2025, prolongando a tendência iniciada em março de 2024.
Exportações que diminuem emissões fora da China
O efeito de transbordamento já é mensurável.
Análise recente estima que as exportações chinesas de tecnologias limpas em 2024 — painéis solares, baterias, veículos elétricos e turbinas eólicas — reduziram em 1% as emissões anuais de CO₂ no restante do mundo, algo próximo de 220 milhões de toneladas.
As emissões “embarcadas” na fabricação desses produtos na China foram compensadas em menos de um ano de uso, dada a economia de carbono que proporcionam em destino.
Pressão sobre petroestados: quando o cliente muda de rumo
A reconfiguração energética chinesa afeta diretamente exportadores de hidrocarbonetos.
As importações de petróleo bruto caíram 1,9% em 2024 na comparação com 2023, a primeira queda anual em duas décadas fora do período da pandemia.
Projeções da Agência Internacional de Energia indicam que a demanda chinesa por petróleo deve atingir o pico por volta de 2027, à medida que o avanço dos veículos elétricos e da eficiência reduz o consumo de combustíveis para transporte.
Para países como Rússia e Arábia Saudita, a inflexão do principal motor de crescimento da demanda da última década é um divisor de águas.
Carvão ainda pesa — e está sendo reposicionado na matriz
Apesar do salto renovável, o carvão continua central no sistema elétrico chinês.
Novas usinas foram comissionadas em 2025, fruto do represamento de projetos aprovados após as crises de fornecimento de 2021–2022.
Ao mesmo tempo, a taxa média de utilização das termelétricas a carvão ficou em torno de 50% em 2024, sinal de capacidade ociosa que dá folga para atender picos de demanda.
Desde 2022, diretrizes energéticas orientam que novas unidades atuem em papel “de apoio” ou “regulatório” — fornecendo flexibilidade à rede, e não como base inflexível.
Esse movimento foi reforçado por um mecanismo de pagamentos por capacidade, introduzido no fim de 2023 e operacionalizado a partir de 2024.
Na prática, a mudança ainda é gradual e convive com incentivos contraditórios e regras de despacho pouco flexíveis.
Eletroestados x petroestados: um mapa em transformação
A ascensão chinesa inaugura uma dualidade provisória.
De um lado, petroestados seguem baseados na exportação de hidrocarbonetos, sujeitos à volatilidade de preços e a choques geopolíticos.
De outro, “eletroestados” alavancam renováveis, armazenamento, redes e domínio de cadeias de suprimentos de baterias e painéis para reduzir custos e projetar poder por meio de exportações de bens e padrões técnicos.
Essa arquitetura tende a redistribuir soberania energética: qualquer país com sol e vento pode gerar a própria eletricidade, mitigando a dependência de importações e blindando-se contra oscilações de commodities.
A Europa corre para reduzir gargalos industriais e de suprimentos, mas parte de uma posição menos integrada do que a chinesa — e, por isso, enfrenta custos de transição mais altos.
A pedra no sapato: carboquímica e emissões setoriais
Há, contudo, pontos de fricção.
O avanço da indústria carboquímica — que converte carvão em combustíveis e produtos químicos — adicionou cerca de 3% às emissões totais da China entre 2020 e 2024.
O segmento cresce para reduzir importações de derivados de petróleo e garantir insumos estratégicos, mas é intensivo em carbono e dificulta a queda estrutural das emissões industriais.
Mesmo assim, a contração nas emissões do setor elétrico e o arrefecimento da construção civil ajudaram a compensar parte desse aumento em 2025.
O que muda para o planeta
A reorientação chinesa acelera a descarbonização global por caminhos práticos.
Ao derrubar custos de equipamentos e expandir oferta, a China universaliza o acesso a tecnologias-chave que permitem a países em desenvolvimento instalar geração solar e eólica, eletrificar frotas e redesenhar sistemas elétricos com armazenamento.
Ao mesmo tempo, a perspectiva de pico da demanda de petróleo torna mais arriscados investimentos de longo prazo em exploração e refino, reequilibrando a geopolítica da energia.
Em vez de barris, o poder passa a ser medido em gigawatts instalados, domínio de minerais críticos e capacidade fabril de baterias e semicondutores.
Diante desse novo tabuleiro, quais países conseguirão converter eletricidade barata e estável em vantagem competitiva duradoura?