China amplia pressão sobre os EUA ao evitar soja americana e reforçar compras no Brasil, enquanto disputa comercial se mistura a tensões tecnológicas e deixa agricultores dos EUA em alerta diante de tarifas e incertezas.
A China iniciou a nova temporada de exportações sem reservar nenhuma carga de soja dos Estados Unidos, algo inédito desde pelo menos o fim dos anos 1990.
O movimento, sustentado por estoques domésticos confortáveis e compras antecipadas no Brasil, recoloca a agricultura no centro da disputa comercial entre Pequim e Washington, segundo reportagem publicada pela Bloomberg nesta segunda-feira (22).
Soja vira peça central e Brasil assume o protagonismo
Tradicionalmente, as tradings chinesas recorrem ao grão americano entre outubro e fevereiro, antes da chegada maciça da safra sul-americana.
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Neste ano, porém, as encomendas estão concentradas no Brasil e em outros fornecedores da região, reduzindo a urgência de contratar nos EUA.
Dados oficiais norte-americanos de meados de setembro não registravam novas vendas para a China no início do ciclo 2025/26, sinal de que a janela que costuma favorecer embarques americanos perdeu tração.
Além da oferta brasileira, importadores chineses ampliaram o colchão de segurança.
Processadores, criadores de suínos e fabricantes de ração reforçaram estoques ao longo do ano, enquanto as reservas do Estado oferecem um amortecedor adicional.
O resultado é previsibilidade de abastecimento até o fim de 2025, com menor exposição a oscilações de preço nos EUA e a riscos de tarifas.
Comércio sob tensão e tarifas seguem no radar
O pano de fundo permanece contencioso.
As tarifas retaliatórias aplicadas sobre a soja dos EUA tornam o produto menos competitivo para compradores chineses.
Mesmo com oscilações cambiais e de prêmios de exportação, a alíquota efetiva superior a 20% ajuda a deslocar demanda para a América do Sul.
Ainda que isenções pontuais existam, o grau de incerteza sobre a manutenção ou não dessas exceções sustenta a estratégia de evitar contratos americanos no curto prazo.
Enquanto isso, agricultores dos EUA acumulam produto com preços pressionados.
Associações do setor relatam risco de “precipício comercial e financeiro”, cobram previsibilidade e pedem remoção de tarifas para reabrir o mercado chinês.
A importância da China é direta: no ano passado, o país asiático absorveu cerca de um quinto das importações de soja americanas em valor, somando mais de US$ 12 bilhões, e historicamente responde por mais da metade da receita externa do complexo de soja dos EUA, de acordo com apuração da Bloomberg.
Trégua frágil: telefonema entre líderes e novas frentes no tech
As conversas entre os governos voltaram à cena.
Em 19 de setembro, o presidente Xi Jinping e o presidente Donald Trump fizeram uma ligação para discutir comércio, tecnologia e o impasse envolvendo o TikTok, em meio a negociações que também tratam de semicondutores e cadeias críticas.
Embora a chamada tenha sido descrita como produtiva pelos dois lados, não houve anúncio de acordo abrangente, e os desdobramentos ficaram para reuniões presenciais nas próximas semanas.
No campo regulatório, Pequim encerrou uma investigação antitruste sobre o domínio do Android, da Google, gesto interpretado por analistas como tentativa de reduzir ruídos antes de novos passos nas tratativas comerciais.
Em paralelo, autoridades chinesas abriram uma investigação preliminar sobre a Nvidia sob suspeitas de infração à lei antimonopólio.
O jornal Bloomberg também apontou que o tema semicondutores segue colado à agenda agrícola, reforçando a leitura de que soja e chips caminham juntos na mesa de negociação.
Estratégia chinesa: cautela calibrada e sinal político
Para especialistas, o recuo nas compras de origem americana combina planejamento e mensagem.
A consultora Even Pay, da Trivium China, avalia que o comportamento atual reflete aprendizado da primeira guerra comercial e o ambiente político:
“Os compradores respondem não apenas às tarifas que permanecem, mas também ao grau extremamente alto de incerteza sobre o curto prazo e aos sinais muito claros de que Pequim não quer que as compras aconteçam sem aval oficial”, disse em entrevista concedida à Bloomberg.
A leitura no mercado é de que, com estoques confortáveis e contratos fechados no Brasil, Pequim pode aguardar.
Caso as tensões se atenuem e haja clareza tarifária, a demanda por soja americana tende a reaparecer.
“Se for fechado um acordo, com certeza haverá algum nível de demanda por soja dos EUA por parte dos compradores chineses”, afirmou Even Pay.
“O problema é a guerra comercial, não a total falta de demanda.”
Impacto nos EUA e expectativa do setor
Nos estados produtores, a ausência de negócios com a China pesa no caixa e no humor.
Cooperativas e sindicatos alertam para margens comprimidas e riscos de queda adicional de preços de farelo e óleo de soja caso a oferta fique represada.
Em ano de colheita volumosa, a perda do principal cliente global repercute nas bases locais, nos fretes e nos prêmios nos portos do Golfo e do Noroeste do Pacífico.
A avaliação do ex-diplomata Andy Rothman, hoje à frente da Sinology, é que a agricultura permanecerá um ponto sensível nas conversas bilaterais, mas sem grandes avanços por telefone.
Segundo ele, metas “impossíveis”, como a quadruplicação de compras americanas pela China, tendem a ceder lugar a compromissos mais realistas, caso surja um entendimento.
Ainda assim, representantes do agro nos EUA pressionam a Casa Branca por uma solução que alivie tarifas e devolva previsibilidade ao calendário de vendas.
Riscos no horizonte: clima, preços e excesso de oferta
A decisão chinesa de privilegiar origens sul-americanas não está livre de contratempos.
Uma quebra de safra no Brasil ou na Argentina poderia apertar a oferta e reabrir espaço para cargas americanas.
Por outro lado, se um acordo político destravar compras nos EUA enquanto os estoques domésticos chineses ainda estiverem altos, processadores temem um excesso de oferta e queda nos preços internos do farelo, afetando estratégias de estocagem e hedge construídas nos últimos meses.
Entre gestores de compras na China, a palavra de ordem é prudência.
Parte dos esmagadores prefere avançar mês a mês, ajustando volumes conforme margens e custos logísticos.
Outros miram oportunidades de arbitragem entre origens, especialmente quando prêmios no Brasil oscilam com o ritmo de embarques.
Sem visibilidade sobre tarifas e sem uma sinalização política clara, o consenso é evitar compromissos que possam ser revertidos por um anúncio súbito.