Por trás das promessas de emprego e educação na Rússia, uma rede de exploração leva jovens africanas a fábricas de drones usados na guerra da Ucrânia
Em seu primeiro dia de trabalho, Adau percebeu que havia cometido um erro grave. Receberam uniformes sem saber o que fariam, e logo foram levadas para dentro de uma imensa fábrica. Ao olhar ao redor, viu drones por todos os lados, em diferentes estágios de montagem. Era o início de uma jornada inesperada que a levaria ao coração de uma das indústrias mais sensíveis da Rússia: a produção de drones militares.
O programa que prometia oportunidades e virou pesadelo
A jovem de 23 anos, natural do Sudão do Sul, foi atraída para a Zona Econômica Especial de Yelábuga, na República do Tartaristão, sob a promessa de um emprego estável e formação profissional. Ela havia se inscrito no programa Yelábuga Start, voltado a mulheres entre 18 e 22 anos, majoritariamente africanas, mas também de países da América Latina e do Sudeste Asiático. O projeto oferecia cursos em logística, hotelaria e serviços gerais, mas escondeu uma realidade muito mais perigosa.
O programa foi acusado de usar práticas de recrutamento enganosas, levando centenas de jovens a trabalhar em fábricas de drones por salários reduzidos e em condições insalubres. Apesar de negar as acusações, os organizadores não refutam que algumas participantes participaram da produção de armamentos.
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As denúncias ganharam repercussão internacional depois que influenciadores sul-africanos que promoviam o programa foram acusados de facilitar o tráfico de pessoas. O governo da África do Sul abriu uma investigação e advertiu suas cidadãs a não se inscreverem. Estima-se que mais de mil mulheres tenham sido recrutadas de vários países africanos.

Sonhos frustrados em uma fábrica de guerra
Adau conta que conheceu o programa por meio de um anúncio publicado no Facebook e endossado pelo Ministério da Educação Superior de seu país. O comunicado prometia bolsas de trabalho e especialização na Rússia. Ela se inscreveu com entusiasmo, preenchendo formulários e indicando que gostaria de atuar como operadora de guindaste, uma função técnica e incomum para mulheres em sua região.
Após um ano de espera e burocracia com o visto, viajou em março de 2024. “Quando cheguei, estava frio demais. Foi um choque”, lembra. Nos primeiros meses, teve aulas de russo e acreditava que estava prestes a começar uma carreira promissora. Mas, em julho, a ilusão se desfez: as participantes foram direcionadas à fábrica de drones militares. Todas haviam assinado acordos de confidencialidade e não podiam falar sobre o trabalho nem com a própria família.
A BBC mostrou a Adau um vídeo da emissora estatal russa RT, que exibia a produção dos drones Shahed-136, modelo iraniano usado por Moscou na guerra contra a Ucrânia. Ela confirmou que era a mesma instalação onde trabalhava. Segundo o especialista Spencer Faragasso, do Instituto de Ciência e Segurança Internacional, “a realidade é que Yelábuga é uma instalação de produção bélica; a própria Rússia se orgulha disso em vídeos oficiais”.
Ataque ucraniano e o medo diário
Duas semanas após a chegada de Adau, em 2 de abril de 2024, a fábrica foi alvo de um ataque de drones ucranianos. “Acordei com o som do alarme e o vidro estourando. Quando saímos correndo, vi um drone vindo em nossa direção”, relatou. O ataque destruiu um prédio vizinho ao dormitório onde viviam as trabalhadoras estrangeiras. Imagens verificadas pela BBC confirmam que o local foi atingido.
O incidente revelou o perigo que corriam. Para Adau, foi o ponto de virada: “Só então percebi que tudo fazia sentido, as mentiras, o sigilo, o medo. Eu não podia continuar ali”.

Quando tentou pedir demissão, foi obrigada a cumprir duas semanas de aviso prévio, durante as quais pintava a estrutura externa dos drones com produtos químicos. As substâncias queimaram sua pele. “Usávamos macacões brancos, mas o material endurecia com o produto e não impedia as queimaduras”, contou. Fotografias de colegas mostram ferimentos graves nos braços e mãos.
A administração de Yelábuga nega irregularidades e afirma que todos os funcionários recebem equipamentos de proteção adequados.
A vida entre promessas falsas e passaportes retidos
Após o ataque, algumas mulheres fugiram do programa, o que levou os organizadores a reter temporariamente os passaportes das demais. Mesmo assim, Adau conseguiu que sua família lhe enviasse dinheiro para o retorno. Outras, porém, ficaram presas à realidade de salários baixos e dívidas. “Prometeram 600 dólares por mês, mas recebi apenas uma fração disso”, disse. Descontavam valores por moradia, aulas de idioma, transporte e até por acionar o alarme de incêndio acidentalmente.
Outra participante, que pediu anonimato, defendeu o programa e afirmou que “ninguém era forçado a nada”. Mas, segundo especialistas, a vulnerabilidade econômica e o isolamento tornavam impossível uma saída fácil.
Adau, que antes sonhava com uma carreira em tecnologia e engenharia, voltou ao Sudão do Sul com traumas e um sentimento de culpa. “Foi horrível perceber que eu ajudava a construir algo que tira tantas vidas. Eu só queria uma chance de crescer, não de participar de uma guerra”, desabafou.
Hoje, o programa Yelábuga Start segue ativo, mas sob intensa investigação internacional. Para muitas jovens como Adau, ele representa o símbolo de uma promessa quebrada, um lembrete de que, atrás de discursos de oportunidade e intercâmbio, pode se esconder a engrenagem de um conflito que parece não ter fim.


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