A ofensiva chinesa no setor de carros elétricos pressiona o mercado global, levanta alertas internos e muda as estratégias das montadoras, ao mesmo tempo em que provoca reações políticas e comerciais no Ocidente diante da ameaça de preços imbatíveis.
Carros elétricos da China estão tão baratos que provocam apreensão até dentro do próprio país.
Descontos agressivos da BYD, maior fabricante chinesa de veículos elétricos (VEs), e uma verdadeira guerra de preços têm causado inquietação em Pequim, com impactos que vão muito além das fronteiras chinesas.
A redução significativa dos preços dos veículos elétricos no maior mercado automobilístico do mundo acende um alerta para o futuro da indústria automotiva chinesa e mundial.
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No dia 23 de maio de 2025, a BYD anunciou cortes nos preços de 22 modelos elétricos e híbridos.
O hatch elétrico Seagull, que já havia surpreendido o mercado com um preço inicial de 73.800 yuans (cerca de R$ 57 mil na época do lançamento, dois anos atrás), agora custa apenas 55.800 yuans (aproximadamente R$ 43,1 mil ou US$ 7.700).
Essa queda abrupta deixou claro que a disputa pelo mercado de veículos elétricos na China entrou em uma fase crítica, com potencial de desestabilizar toda a cadeia produtiva do setor.
Governo chinês alerta sobre guerra de preços insustentável
O Ministério da Indústria chinês não demorou a reagir.
Em 31 de maio, conforme divulgado pela agência Xinhua, o governo declarou que “não há vencedores na guerra de preços, muito menos um futuro sustentável”.
O órgão enfatizou que a competição predatória pode prejudicar os investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e levantar questões sobre a segurança dos veículos.
Além do ministério, o People’s Daily, órgão oficial do Partido Comunista, alertou que produtos de baixo custo e qualidade inferior podem comprometer a reputação dos carros “made in China” globalmente.
Essa preocupação sinaliza que o governo chinês está tentando frear a corrida descontrolada por preços baixos, que apesar de atrair consumidores, pode trazer prejuízos a longo prazo para a indústria e a economia do país.
Mercado fragmentado e competição extrema desafiam montadoras
A origem do problema está no crescimento acelerado e fragmentado do mercado de veículos elétricos na China.
De acordo com dados da empresa de pesquisa Jato Dynamics, existem atualmente 115 marcas chinesas atuando no segmento de VEs, mas apenas poucas — entre elas a BYD — conseguem manter lucratividade e potencial para sobreviver a longo prazo.
Essa superoferta gerou um ambiente de competição extrema, com empresas e até governos locais buscando ganhar espaço a qualquer custo.
A consequência tem sido uma redução constante nos preços, afetando a rentabilidade das montadoras e fomentando um cenário de competição considerada “insalubre” por líderes do setor.
Wei Jianjun, presidente da Great Wall Motor, uma das maiores montadoras chinesas, chamou o ambiente atual do mercado de “insalubre” e citou o colapso do setor imobiliário como um sinal de alerta para os riscos envolvidos.
Já a BYD classificou essas declarações como “alarmistas”, destacando que a empresa mantém estratégia sólida e visão de longo prazo para o setor.
Impactos econômicos e sociais da guerra de preços
A guerra de preços tem efeitos colaterais importantes, que vão além da indústria automotiva.
Quando as montadoras pressionam fornecedores para cortar custos, isso pode resultar em demissões e redução da renda dos trabalhadores envolvidos na cadeia produtiva.
Esse movimento acontece justamente em um momento em que o governo chinês tenta estimular a demanda doméstica para mitigar os impactos das tensões comerciais com os Estados Unidos e outros países.
A pressão sobre os fornecedores e a margem cada vez mais apertada dos fabricantes indicam que o mercado chinês de veículos elétricos enfrenta um ciclo difícil, que exigirá ajustes e consolidação nos próximos anos.
Expansão internacional como saída estratégica
Apesar desse cenário complicado internamente, as montadoras chinesas estão mirando no mercado externo para ampliar suas vendas.
Segundo a agência Reuters, a BYD pretende comercializar mais da metade de seus carros no exterior até 2030, com foco especial na América Latina e na Europa.
Esse movimento representa uma mudança significativa, considerando que, em 2024, a China respondeu por cerca de 90% das vendas da BYD — cerca de 4,3 milhões de veículos.
A estratégia de exportação pode ajudar a compensar as margens cada vez menores no mercado doméstico, pois os carros chineses podem comandar preços mais altos fora do país.
Mesmo diante de tarifas mais elevadas aplicadas pela União Europeia sobre os veículos elétricos chineses, a BYD conseguiu vender mais carros elétricos do que a Tesla na Europa em abril de 2025, conforme análise da Jato Dynamics.
Esse desempenho reforça o potencial das marcas chinesas para desafiar as gigantes americanas e europeias no mercado global de veículos elétricos.
Setores industriais chineses enfrentam desafios similares
No entanto, a guerra de preços entre as empresas chinesas não é um fenômeno isolado.
Diversos setores industriais do país enfrentam conflitos similares, caracterizados por excesso de capacidade, competição intensa e margens apertadas.
Até o final do terceiro trimestre de 2024, quase 25% das empresas listadas na bolsa chinesa estavam operando no vermelho — um índice que dobrou em cinco anos, segundo relatórios econômicos recentes.
BYD mantém vantagem com controle da cadeia produtiva
A BYD, no entanto, mantém uma posição vantajosa graças à sua grande escala e controle vertical da cadeia produtiva.
A empresa detém direitos sobre minas de minerais essenciais para a fabricação de baterias, além de possuir frota própria de navios para exportação, o que reduz custos logísticos e aumenta sua competitividade internacional.
Em novembro de 2024, a BYD intensificou a pressão sobre seus fornecedores, exigindo reduções de preços na ordem de 10%, um movimento que reforça seu domínio sobre a cadeia produtiva e antecipa uma competição ainda mais acirrada.
Impactos para a economia e comércio global
Essa dinâmica tem impactos diretos sobre a economia chinesa.
Se a pressão sobre fornecedores se intensificar, poderá haver redução de empregos e renda para trabalhadores do setor automobilístico, o que ameaça a recuperação do consumo doméstico — fundamental para equilibrar a economia diante do cenário global incerto.
Ao mesmo tempo, o enfraquecimento dos preços domésticos pode estimular a expansão da presença dos veículos elétricos chineses no exterior, o que gera preocupação em outros países.
Governos na Europa e nas Américas observam com cautela o avanço das marcas chinesas, que podem exportar o excesso de capacidade e intensificar tensões comerciais, especialmente em um contexto já marcado por disputas tarifárias e políticas industriais protecionistas.
Assim, os preços baixos dos veículos elétricos chineses representam uma faca de dois gumes: enquanto beneficiam consumidores com produtos acessíveis e tecnologia avançada, também geram desafios sérios para a sustentabilidade da indústria e para as relações comerciais internacionais.
Diante desse cenário complexo e em rápida evolução, fica a pergunta: como os governos e as montadoras ao redor do mundo devem reagir a essa transformação acelerada no mercado global de veículos elétricos?