Expansão do Brics, uso de moedas locais e tensão com os EUA ampliam debate sobre o futuro do dólar e movimentam a geopolítica global, com reações diretas de Donald Trump e respostas firmes do presidente Lula.
A ascensão do Brics e sua aproximação em torno de alternativas ao dólar podem colocar em risco um dos principais pilares do poder dos Estados Unidos.
A avaliação é do professor de finanças e empresário José Kobori, em entrevista publicada no Flow Podcast.
Segundo ele, a articulação entre Brasil, China, Rússia e demais membros do bloco representa um movimento “contra-hegemônico” capaz de acelerar a perda da supremacia da moeda norte-americana no comércio internacional.
-
Com R$ 870 milhões, Ambev prepara nova fábrica de garrafas em cidade brasileira para reforçar logística e enfrentar avanço da Heineken e das artesanais
-
Montadora chinesa inaugura fábrica no Brasil prometendo até 100 mil carros por ano, geração de empregos, R$ 10 bilhões em investimentos, híbridos plug-in e motor flex com tecnologia da Bosch
-
A nova empresa chinesa no Brasil, a Keeta, entra na justiça contra o 99food com acusações de práticas anticoncorrenciais. Saiba mais da guerra dos deliverys
-
Anúncio de demissões numa grande empresa de energia abalam São José da Barra (MG), expondo a vulnerabilidade da cidade por temer onda de desligamento
Origem e objetivos do Brics
O grupo surgiu em 2009, inicialmente com Brasil, Rússia, Índia e China — a sigla era apenas “Bric”.
A entrada da África do Sul no mesmo ano transformou o nome para Brics.
Conforme explicou Kobori, o termo foi cunhado por um economista norte-americano, mas ganhou corpo a partir de iniciativas de cooperação, em especial com participação ativa do Brasil na época.
O objetivo, segundo ele, já era se contrapor à ordem unipolar liderada pelos Estados Unidos desde o fim da Guerra Fria.
No início, Washington não via o bloco como uma ameaça concreta. “Até a posse do Trump, os americanos não entendiam direito o que era o Brics”, comentou.
Mas, quando assumiu a presidência, Donald Trump passou a mencionar o grupo de forma crítica, sobretudo por conta da criação do Novo Banco de Desenvolvimento, apelidado de “Banco do Brics”.
Um dos pontos centrais que incomodam os EUA, destacou Kobori, é a intenção de realizar transações internacionais sem usar o dólar.
O impacto da hegemonia do dólar
Para o professor, essa mudança mexe diretamente com a engrenagem que sustenta o poderio norte-americano.
“Perder a hegemonia do dólar é como perder uma guerra mundial”, disse, citando declaração do próprio Trump.
Kobori explicou que o status privilegiado do dólar permite aos Estados Unidos emitir dívida em larga escala e vendê-la globalmente.
Caso o mercado internacional deixe de comprar esses títulos, Washington teria de se financiar internamente — algo que considera inviável na escala atual.
Além dos cinco países fundadores, o Brics vem ampliando sua influência com a entrada de novas nações, incluindo o Irã.
“Hoje, o bloco já reúne mais de 50% da população mundial e cerca de 40% do PIB global”, apontou.
A China, sozinha, já possui produção industrial superior à dos Estados Unidos e da União Europeia juntos.
Esse peso econômico fortalece iniciativas como a ampliação das transações bilaterais em moedas locais, evitando a conversão em dólar.
Moedas locais e swaps cambiais
Kobori também mencionou acordos como os “swaps cambiais” realizados fora da moeda norte-americana.
A recente viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China, segundo ele, reforçou esse tipo de cooperação.
Para o professor, faz mais sentido que países protejam suas economias e empresas usando as próprias moedas, sem a necessidade de passar pelo dólar.
Na visão de Kobori, essa estratégia explica por que Washington vê o fortalecimento do Brics como uma ameaça direta.
Atacar economicamente países como Brasil, Irã ou Rússia, disse, é também uma forma de enfraquecer o bloco.
Ele ressaltou ainda que a ascensão econômica da China “é irreversível” e que Pequim amplia sua rede de parcerias com África, Ásia Central e Oriente Médio, especialmente por meio da “Nova Rota da Seda”.
Postura do Brasil e tensões políticas
Na última cúpula do Brics, sediada no Rio de Janeiro, o Brasil teve papel relevante na definição da pauta.
De acordo com Kobori, a expectativa era de que o governo brasileiro adotasse um tom mais neutro, priorizando temas como saúde pública e governança da inteligência artificial.
No entanto, a resolução final incluiu críticas diretas a ações de Israel e dos Estados Unidos contra o Irã, além de condenar tarifas comerciais impostas por Trump.
Até a Índia, que geralmente busca se manter neutra, aderiu a esse posicionamento.
Essas posições levaram senadores norte-americanos, como Lindsey Graham, a sugerir possíveis retaliações comerciais contra Brasil, China e Índia.
Kobori observou que medidas como essas teriam alto custo para a economia dos EUA, que já enfrenta inflação acima da média histórica.
A imposição de tarifas elevadas sobre esses três mercados, avaliou, poderia agravar o cenário interno e dificultar os planos de Trump de reduzir juros antes das eleições legislativas de meio de mandato.
Conflito comercial ganha novo capítulo
Nesta quinta-feira (14), a CNN Brasil divulgou que o presidente Donald Trump voltou a justificar o tarifaço contra o Brasil, desta vez relacionando-o à ação penal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, seu aliado político.
Ele acusou o país de práticas comerciais injustas e confirmou a taxação de 50% sobre produtos brasileiros.
O presidente Lula respondeu afirmando que o Brasil não se ajoelhará diante da Casa Branca, embora mantenha abertura para negociações.
Em declaração, disse ter dito a Trump que, se ele tivesse feito no Brasil o mesmo que fez nos Estados Unidos durante a invasão ao Capitólio, também seria julgado e, se condenado, iria para a prisão.
Mais cedo, o deputado Eduardo Bolsonaro, em entrevista à agência Reuters, afirmou esperar mais sanções de Washington a autoridades brasileiras e possivelmente novas tarifas contra o país.
Diante do impasse, o governo Lula aposta no fortalecimento das relações com países do Brics e do chamado “sul global” para ampliar mercados e adotar uma postura conjunta em defesa do multilateralismo.
Lula tenta organizar uma reunião virtual com líderes internacionais para articular uma resposta comum à diplomacia norte-americana.
Até o momento, não há confirmação oficial, e poucos chefes de governo manifestaram disposição para criticar publicamente Trump.
Resiliência do agronegócio brasileiro
No comércio, no entanto, o agronegócio brasileiro demonstrou resiliência.
Segundo o Ministério da Agricultura e Pecuária, as exportações cresceram 1,5% em julho de 2024 em comparação ao mesmo mês do ano anterior.
Entre os destaques está o café, que registrou alta de 25% no valor exportado.
Para José Kobori, a disputa em torno do dólar e do comércio global segue como o eixo central da tensão entre o Brics e os Estados Unidos.
Ele concluiu que, enquanto a moeda norte-americana sustentar o financiamento da política externa e militar de Washington, o país fará de tudo para evitar que blocos como o Brics ganhem força suficiente para mudar as regras do jogo.
Diante desse quadro, a pergunta que fica é: estamos testemunhando o início do fim da supremacia do dólar no sistema internacional?