Brasil evita acionar cláusula do Mercosul e aposta em negociação com EUA para proteger exportações bilionárias de carnes.
A ofensiva tarifária dos Estados Unidos contra produtos brasileiros abriu um debate intenso em Brasília. O Brasil dispõe de instrumentos no âmbito do Mercosul que poderiam permitir uma resposta dura, incluindo a aplicação de medidas de retaliação ou suspensão de benefícios tarifários. Mas, até aqui, a diplomacia brasileira tem seguido outro caminho: evitar a escalada do conflito e apostar em negociações diretas para proteger seu maior trunfo no mercado norte-americano — as exportações de carnes bovina e de frango, que movimentam bilhões de dólares por ano.
Essa escolha mostra a encruzilhada em que o país se encontra: de um lado, os mecanismos legais e multilaterais que dariam respaldo a uma retaliação; de outro, a necessidade de preservar um setor vital da economia nacional que depende fortemente do mercado norte-americano.
O que dizem as regras do Mercosul
O Mercosul possui cláusulas de defesa comercial, previstas tanto no Tratado de Assunção (1991) quanto no Protocolo de Ouro Preto (1994), que conferem ao bloco instrumentos de coordenação em disputas com terceiros países. Entre eles estão:
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- Consultas e negociações conjuntas em caso de barreiras comerciais.
- Adoção de medidas compensatórias quando há prejuízos comprovados.
- Retaliações autorizadas no âmbito da OMC, apoiadas pelo bloco como um todo.
Na prática, isso significa que o Brasil não está sozinho: poderia acionar o Mercosul para retaliar tarifas impostas pelos EUA, seja por meio de sobretaxas equivalentes, seja pela suspensão de concessões em outros setores. Essa possibilidade dá força de barganha, mas traz riscos de ampliar a crise diplomática.
Cláusula de Defesa Comercial (Tratado de Assunção, 1991)
O Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, já previa que os Estados-partes poderiam adotar medidas para proteger seus interesses comerciais quando houvesse distorções de mercado provocadas por terceiros países. Isso abre espaço para sobretaxas ou salvaguardas coordenadas.
Protocolo de Ouro Preto (1994)
Esse protocolo deu personalidade jurídica internacional ao Mercosul. Entre suas disposições, está a possibilidade de negociações conjuntas com terceiros países e, em caso de litígio, a adoção de medidas compensatórias ou retaliações com respaldo do bloco.
Sistema de Solução de Controvérsias do Mercosul (Protocolo de Olivos, 2002)
O Protocolo de Olivos regula como resolver disputas comerciais dentro do bloco e também como o Mercosul pode se posicionar perante outros parceiros. Ele prevê:
- Painéis arbitrais para avaliar se houve violação de regras comerciais.
- Autorização de retaliação proporcional caso o país infrator (no caso, um externo como os EUA) não reverta a medida.
Cláusula de Reciprocidade
Ainda que não esteja formalmente no tratado como uma “cláusula única”, o Mercosul adota o princípio de reciprocidade comercial. Ou seja, se um país de fora aplica barreiras, o bloco pode aplicar medidas equivalentes. Essa cláusula é usada como argumento político para pressionar parceiros.
Apoio do Mercosul em Ações na OMC
Outra consequência dos tratados é que, se um Estado-parte sofrer barreiras externas, pode acionar a OMC com respaldo conjunto do Mercosul. Isso amplia o peso da demanda e autoriza, em caso de vitória, retaliações multilaterais reconhecidas internacionalmente.
Ou seja: o Brasil poderia acionar Ouro Preto + Olivos + reciprocidade, e isso daria lastro para sobretaxar produtos norte-americanos, suspender concessões tarifárias ou até bloquear certas importações. Mas, como você já viu na matéria que produzimos, o Itamaraty prefere usar esses instrumentos apenas como ameaça, mantendo a negociação política para não colocar em risco as exportações de carnes.
A importância das exportações de carnes para os EUA
O mercado de carnes é um dos mais estratégicos para o Brasil nos EUA. Segundo dados da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (ABIEC), as vendas de carne bovina ao mercado norte-americano superaram US$ 1,2 bilhão em 2023, enquanto a carne de frango somou outros US$ 750 milhões.
No total, o Brasil responde por cerca de 25% das importações de carne bovina e mais de 20% da carne de frango consumida nos EUA. O setor gera centenas de milhares de empregos em estados brasileiros como Mato Grosso, Goiás, Mato Grosso do Sul e Paraná.
Qualquer barreira adicional colocada pelos EUA nesse segmento teria impacto imediato sobre frigoríficos, produtores rurais e toda a cadeia do agronegócio.
Itamaraty escolhe a via diplomática
Diante da ameaça tarifária, o Itamaraty deixou claro que sua prioridade é evitar a escalada e buscar um acordo político. Em pronunciamentos recentes, diplomatas brasileiros ressaltaram que uma retaliação dura poderia levar Washington a mirar exatamente os setores mais sensíveis, como o de carnes.
O vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro Fernando Haddad já defenderam postura semelhante: diálogo e paciência, mesmo diante da pressão. O raciocínio é simples: retaliar pode até soar firme, mas arrisca comprometer as exportações bilionárias que sustentam o superávit da balança comercial brasileira.
O dilema estratégico
Essa decisão gera um dilema estratégico para o Brasil:
- Retaliar pelos mecanismos do Mercosul poderia mostrar força e dissuadir novas barreiras, mas também abriria espaço para represálias específicas contra carnes e outros produtos do agro.
- Negociar mantém os canais abertos, mas pode ser interpretado como sinal de fraqueza, incentivando os EUA a manter ou até ampliar medidas restritivas.
Economistas apontam que, em disputas desse tipo, a percepção de firmeza é tão importante quanto a retaliação em si. Por isso, há quem defenda que o Brasil mantenha pelo menos a ameaça real de acionar os instrumentos do Mercosul, mesmo sem colocá-los em prática.
Lições da história
O Brasil já viveu situações semelhantes. Em 2002, no caso do algodão na OMC, o país conquistou o direito de retaliar os EUA em bilhões de dólares por subsídios ilegais. Mas, em vez de aplicar a retaliação, preferiu negociar um acordo que garantiu compensações financeiras e abertura de mercado.
Esse precedente mostra que o país costuma usar as vitórias jurídicas como moeda de troca, em vez de arma imediata. A postura atual do Itamaraty parece seguir a mesma lógica.
Os riscos para o agronegócio
Enquanto isso, o setor agropecuário acompanha apreensivo. Frigoríficos já projetam queda na margem de lucro se houver demora em uma solução.
Pequenos produtores temem não ter para onde escoar parte da produção caso o mercado norte-americano seja fechado.
Além disso, há a concorrência de países como Austrália e Canadá, prontos para ocupar espaço caso o Brasil perca participação nos EUA.
Para o agronegócio, cada semana de incerteza representa milhões em contratos suspensos ou renegociados.
O Brasil está diante de uma escolha delicada. Tem respaldo jurídico no Mercosul para retaliar as tarifas norte-americanas, mas prefere apostar em negociação direta para preservar exportações bilionárias de carnes.
É uma estratégia que busca equilibrar firmeza e pragmatismo, mas que coloca em risco a percepção de poder de barganha do país. Se a diplomacia falhar, o custo para a indústria da carne pode ser altíssimo.
E você, leitor: o Brasil deve continuar apostando no diálogo, mesmo sob risco de perder espaço no mercado, ou está na hora de mostrar os dentes e usar o peso do Mercosul?