Projetos ferroviários bilionários avançam na América Latina, com destaque para a megaforrovia entre Brasil e Peru, parceria com a China que pode transformar rotas comerciais e integrar diferentes biomas, fronteiras e cadeias produtivas no continente.
A América Latina voltou a apostar nos trilhos. Segundo o Banco de Desenvolvimento da América Latina e do Caribe (CAF), há 155 projetos ferroviários em carteira na região, com investimentos estimados em US$ 384 bilhões até 2050.
Nesse cenário, o Brasil colocou na mesa uma ligação de cerca de 3.000 km entre Ilhéus (BA) e Chancay (Peru), estudada em julho de 2025 em parceria com a China, para encurtar rotas ao mercado asiático e se conectar a obras em curso no continente.
Um corredor bioceânico no radar do Brasil
O plano brasileiro, segundo o portal UOL, prevê aproveitar trechos já existentes e concedidos, como a Ferrovia de Integração Oeste–Leste (Fiol), a Ferrovia Norte–Sul (FNS) e a Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (Fico), e completar os vazios até a fronteira com o Peru.
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A proposta cruza cinco estados — Bahia, Goiás, Mato Grosso, Rondônia e Acre — e atravessa quatro biomas.
A etapa atual é de estudos de viabilidade e traçado, após a assinatura de um memorando entre a estatal Infra S.A. e o China Railway Economic and Planning Research Institute.
A ministra do Planejamento, Simone Tebet, tem defendido a ambição do projeto. “Se este projeto for realizado, vamos transformar todo o cenário econômico do Brasil”, afirmou em julho.
Na mesma ocasião, disse que a iniciativa deixará o país “mais competitivo”, com efeitos diretos sobre o Norte, o Centro-Oeste, o interior do Sudeste e o Nordeste.
Chancay como porta de saída ao Pacífico
Do lado peruano, o porto de Chancay ganhou protagonismo após ser inaugurado em novembro de 2024, com investimento majoritário da chinesa COSCO.
A conexão ferroviária pretendida permitiria redirecionar cargas do agronegócio e da mineração brasileiras para o Pacífico, reduzindo dias de viagem em comparação a rotas pelo Canal do Panamá ou pelo Cabo da Boa Esperança.
Para especialistas em comércio exterior, essa mudança teria potencial de reposicionar corredores logísticos do Centro-Oeste no comércio com a Ásia.
Reação da indústria e as críticas ambientais
A aproximação com Pequim, contudo, divide opiniões. A Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer) expressou indignação com a possibilidade de aquisição de material rodante no exterior e defendeu maior priorização da cadeia produtiva nacional.
A entidade argumenta que o setor instalado no país tem capacidade e ociosidade para atender novos pedidos e gerar emprego qualificado. Ambientalistas e movimentos sociais também apontam riscos.
Uma ferrovia dessa escala atravessa áreas sensíveis e pode induzir desmatamento indireto, ainda que a operação em trilhos seja menos emissora do que o transporte rodoviário por tonelada.
No Maranhão, por exemplo, líderes quilombolas vêm questionando um megaporto com ferrovia associada em área próxima a São Luís, citando possíveis impactos territoriais e sociais ao longo do traçado proposto.
No caso do corredor bioceânico, o governo afirma que os estudos considerarão alternativas que evitem terras indígenas e áreas de maior conservação.
Integração regional ganha tração
A reativação ferroviária não se limita ao Brasil.
O CAF mapeou que, entre os 155 projetos, 50 estão no Brasil, 21 no México e 20 na Colômbia, com diferentes estágios de maturidade e fontes de financiamento.
A própria instituição tem promovido fóruns técnicos e colocado recursos para obras estruturantes, com a tese de que trilhos reduzem custos logísticos e emissões e integram cadeias produtivas no longo prazo.
No Peru, além da conexão com o Brasil, discute-se uma ferrovia costeira, do limite com o Equador ao extremo sul na fronteira com o Chile, para descongestionar rodovias e articular portos.
A proposta é vista como complementar à expansão de Chancay e a outros terminais do Pacífico.
México: operação do Tren Maya sob escrutínio
No México, o Tren Maya é o caso mais adiantado de operação recente.
Desde a inauguração por etapas entre dezembro de 2023 e 2024, o serviço acumulou, até meados de julho de 2025, cerca de 1,36 milhão de passageiros em 7.290 viagens.
Apesar do fluxo crescente, o desempenho financeiro é negativo. Levantamentos publicados em 2025 mostram prejuízo operacional acumulado de 5,807 bilhões de pesos até junho daquele ano, com custos superando receitas.
O diretor do projeto, Óscar David Lozano Águila, relativiza as perdas iniciais, ao dizer que a infraestrutura cria um novo polo econômico com retorno de médio e longo prazo.
A repercussão regional é imediata. A Guatemala manifestou interesse em negociar uma interligação do Trem Maya até a Cidade da Guatemala e, futuramente, Belize.
Em declarações recentes, o presidente Bernardo Arévalo disse ver a ferrovia como vetor de desenvolvimento transfronteiriço e defendeu cooperação para estudos de viabilidade, com a premissa de não atravessar áreas de proteção ambiental.
Chile e Colômbia aceleram seus trilhos
No Chile, a estatal EFE toca duas frentes de passageiros na Região Metropolitana de Santiago.
O Tren Alameda–Melipilla tem custo estimado em cerca de US$ 1,9 bilhão e avança com licitações do trecho subterrâneo.
Já o Santiago–Batuco firmou em 2025 um contrato de US$ 470 milhões para as obras em superfície, com a etapa subterrânea prevista para licitação posterior.
A estratégia chilena prioriza ligações de média distância para desafogar o trânsito urbano e conectar periferias produtivas.
A Colômbia, por sua vez, segue com o projeto do Metrô de Bogotá e trens metropolitanos.
Em setembro de 2025, a capital recebeu o primeiro trem de sua Linha 1, marco simbólico de um empreendimento que pretende integrar Bogotá aos municípios de Cundinamarca e aliviar um sistema viário saturado.
O país também discute um trem interoceânico e a reativação de trechos de carga estratégicos.
Geopolítica e logística no mesmo trilho
A leitura geopolítica permeia a agenda. Analistas observam que uma via terrestre ao Pacífico reduziria a dependência de rotas controladas por terceiros e aproximaria produtores brasileiros de seus principais compradores na Ásia.
Para o cientista político Mauricio Santoro, especialista em relações Brasil–China, uma ligação direta beneficiaria sobretudo os polos de commodities agrícolas e minerais, ao encurtar distâncias e prazos de embarque.
Em paralelo, persiste o debate sobre salvaguardas ambientais, consulta a comunidades e regras claras de conteúdo local para que os benefícios se materializem sem retrocessos sociais.
No balanço, a nova rodada ferroviária latino-americana combina ambição e cautela.
Governos correm para tirar do papel projetos de alto impacto econômico enquanto enfrentam questionamentos sobre governança, financiamento, salvaguardas e participação da indústria doméstica.
À medida que estudos avançam e canteiros se expandem, a pergunta central ganha urgência: qual modelo de ferrovia a região quer priorizar para equilibrar competitividade, proteção ambiental e desenvolvimento territorial de longo prazo?