Entre 1998 e 2017, Brasil financiou mais de R$ 10 bilhões em obras na América Latina e África. Parte do valor segue pendente de países em crise.
Ao longo de quase duas décadas, o Brasil investiu mais de R$ 10 bilhões na exportação de serviços de engenharia para diversos países da América Latina e da África. Os recursos, provenientes principalmente de linhas de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), financiaram projetos de infraestrutura de grande porte — de rodovias e portos a usinas e sistemas de transporte urbano. No entanto, uma parte significativa desse montante ainda depende do pagamento de países que enfrentam severas crises econômicas e políticas, colocando em risco a recuperação integral dos valores.
Entenda o que significa “exportação de serviços de engenharia”
A exportação de serviços de engenharia consiste em contratos firmados entre empresas brasileiras e governos estrangeiros para a execução de obras de infraestrutura fora do Brasil.
Na prática, o financiamento é concedido pelo BNDES, mas o dinheiro não é transferido diretamente para o país tomador. Em vez disso, os recursos são pagos às empresas brasileiras responsáveis pelas obras, garantindo a aplicação em produtos e serviços nacionais.
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Essa modalidade ganhou força a partir dos anos 2000, impulsionada pela internacionalização de grandes construtoras e pela estratégia do governo brasileiro de ampliar a presença econômica e diplomática em regiões estratégicas. Países da América Latina e da África foram os principais destinos, dada a proximidade geopolítica e a carência de infraestrutura nessas regiões.
Principais obras financiadas
Entre 1998 e 2017, dezenas de projetos receberam financiamento, com destaque para empreendimentos de alto valor e visibilidade. Entre os exemplos mais conhecidos estão:
- Porto de Mariel, em Cuba: uma das maiores obras financiadas pelo Brasil no exterior, que incluiu a construção e modernização do complexo portuário.
- Metrôs de Caracas e Los Teques, na Venezuela: ampliação e modernização de linhas de transporte urbano.
- Rodovias e hidrelétricas em Angola e Moçambique: obras de integração e fornecimento de energia elétrica.
- Projetos portuários e viários no Equador, Peru e Gana: ampliação de capacidade logística e modernização de corredores de exportação.
Muitas dessas obras foram executadas por empresas brasileiras como Odebrecht, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão, que ganharam projeção internacional, mas também estiveram envolvidas em investigações de corrupção.
Modalidade é defendida por especialistas como uma forma de gerar emprego e renda no Brasil
Embora a modalidade tenha sido defendida como uma forma de gerar emprego e renda no Brasil, parte significativa dos financiamentos ainda não foi quitada. Diversos países beneficiados atravessam crises econômicas e políticas que dificultam o pagamento das parcelas, como Venezuela, Cuba e Moçambique.
Segundo dados mais recentes do BNDES e do Ministério da Economia, boa parte dessas operações foi classificada como inadimplente ou em processo de renegociação. Nessas situações, entra em ação o Fundo de Garantia à Exportação (FGE), um mecanismo financiado pelo Tesouro Nacional que cobre os valores não pagos e transfere para o governo brasileiro a responsabilidade de recuperar a dívida.
Isso significa que o BNDES não registra prejuízo direto, mas o custo final recai sobre o contribuinte brasileiro. E a experiência mostra que, em muitos casos, o retorno é incerto ou pode levar décadas para ocorrer.
Venezuela e Cuba são os maiores devedores
Entre os maiores devedores estão Venezuela e Cuba, ambos com histórico de dificuldades financeiras e sanções internacionais que dificultam o acesso a divisas estrangeiras. No continente africano, países como Moçambique também enfrentam desafios para honrar compromissos, especialmente após crises de endividamento externo.
O risco para o Brasil não é apenas financeiro. Há também um componente diplomático, já que a cobrança mais rígida dessas dívidas pode gerar tensões com governos que historicamente mantêm relações próximas com o país.
Por outro lado, a manutenção de atrasos sem medidas efetivas de recuperação alimenta críticas internas sobre a viabilidade de continuar oferecendo esse tipo de financiamento.
Financiamentos internacionais do BNDES são alvo recorrente de disputas políticas
Os financiamentos internacionais do BNDES são alvo recorrente de disputas políticas. Críticos argumentam que o modelo privilegia governos aliados por razões ideológicas e expõe o Brasil a riscos elevados, sem garantias proporcionais.
Defensores sustentam que as operações fortaleceram a presença de empresas brasileiras no exterior, geraram empregos no país e ajudaram a consolidar o Brasil como um ator relevante no desenvolvimento de infraestrutura em nações emergentes.
Nos últimos anos, medidas foram adotadas para aumentar a transparência e limitar a exposição a riscos. O BNDES passou a publicar a lista de operações internacionais e as condições dos contratos, além de endurecer critérios para concessão de novos financiamentos. Ainda assim, operações antigas continuam gerando debates e polêmicas.
O papel do Fundo de Garantia à Exportação
O FGE é peça central nesse processo. Criado para assegurar que exportadores brasileiros recebam o valor contratado mesmo diante de inadimplência, ele é custeado com recursos públicos e funciona como uma espécie de seguro contra calotes internacionais. Quando um país deixa de pagar, o FGE cobre a dívida junto ao BNDES e assume a cobrança, muitas vezes por meio de negociações diplomáticas e acordos de longo prazo.
Na prática, esse mecanismo evita que o banco registre prejuízos imediatos, mas transfere o risco para o Tesouro Nacional. Especialistas apontam que, embora o FGE seja essencial para viabilizar grandes contratos internacionais, ele precisa ser gerido com rigor para evitar que vire um instrumento de absorção de perdas recorrentes.
O que mudou após 2017
Após escândalos de corrupção envolvendo construtoras e questionamentos sobre a efetividade desses financiamentos, o Brasil reduziu drasticamente a concessão de crédito para obras no exterior. Hoje, os projetos precisam atender a critérios mais rígidos de viabilidade econômica e garantias de pagamento.
Ainda assim, as dívidas acumuladas antes desse período permanecem como um desafio. Para alguns especialistas, será necessário revisar acordos, estabelecer cronogramas realistas e até aceitar perdas parciais para encerrar litígios que se arrastam por anos.
Impactos econômicos e lições para o futuro
A experiência brasileira com a exportação de serviços de engenharia para países em desenvolvimento deixa lições importantes. Embora tenha gerado ganhos para empresas e para a diplomacia nacional, também expôs fragilidades na gestão de riscos e na avaliação de capacidade de pagamento dos países contratantes.
No cenário atual, com maior competição global e recursos públicos limitados, a tendência é que o Brasil priorize financiamentos a projetos com retorno mais previsível e parceiros com histórico sólido de cumprimento de obrigações.
O desafio para o Brasil está em encontrar o equilíbrio entre exercer influência diplomática por meio de financiamentos e proteger os cofres públicos de prejuízos. A exportação de serviços de engenharia continuará sendo uma ferramenta estratégica, mas o histórico recente mostra que a cautela é indispensável.
Com países em crise e dívidas em aberto, o debate sobre o uso de recursos públicos para financiar obras no exterior certamente continuará a gerar polêmica nos próximos anos — e o contribuinte brasileiro seguirá atento para saber se o investimento de mais de R$ 10 bilhões terá, de fato, retorno.