Capital externo amplia controle indireto de áreas rurais no Brasil, segundo especialistas reunidos na USP, com uso de fundos e empresas nacionais intermediárias. O tema envolve soberania, monitoramento estatal, FIAGRO e impactos sociais em regiões estratégicas.
Especialistas na USP alertam sobre estrangeirização de terras
Especialistas reunidos na Faculdade de Direito da USP alertaram que estrangeiros vêm controlando terras e propriedades rurais brasileiras por vias indiretas, fora do alcance das estatísticas públicas e, muitas vezes, da fiscalização.
O tema dominou o painel “Estrangeirização e land grabbing”, realizado na terça-feira (30/9) durante o Simpósio Internacional sobre Propriedade e Estrangeiros.
Entre as origens mais frequentes desse capital, foram citados Estados Unidos, Portugal, Japão e Canadá.
-
PEC da reforma administrativa promete acabar com supersalários acima de R$ 46 mil, proíbe férias de 60 dias e muda regras de concursos públicos
-
Volkswagen demite mais de 500 funcionários por má conduta em 2025, aplica 2 mil advertências: “faltaram ao trabalho como se fosse feriado”
-
Isenção do Imposto de Renda vai atingir 15 milhões de brasileiros, enquanto super-ricos assumem parte da conta
-
Bolsa Família desestimula a CLT? Estudo mostra qual foi o efeito real do benefício de R$ 600 na força de trabalho brasileira
Mediado pelo professor José Fernando Simão (FDUSP), o debate reuniu juristas e pesquisadores que vêm acompanhando a chamada “financeirização da terra”.
O advogado Ney Strozake (MST) descreveu a apropriação por empresas estrangeiras como uma modalidade “mais sutil” e “mais jurídica” de ocupação territorial, voltada à produção de commodities para exportação — e não à oferta de alimentos ao mercado interno.
Na avaliação dele, a falta de controle estatal sobre o uso do solo contraria a função social da propriedade prevista na Constituição e ameaça a segurança nacional e alimentar.
Ainda segundo Strozake, a expansão desse capital reforça a concentração fundiária e empurra camponeses, povos indígenas e quilombolas para fora de seus territórios.
Ele defendeu a articulação entre universidades e entidades civis para monitorar o fenômeno, promover debates qualificados e cobrar orçamento e capacidade de atuação do Incra.
Como capital estrangeiro controla terras sem compra direta (FIAGRO e estruturas)
O economista e sociólogo Sérgio Pereira Leite (UFRRJ) afirmou que os números oficiais do Incra subestimam o controle estrangeiro porque boa parte das operações não se apresenta como propriedade direta de não residentes.
Em vez disso, recorre-se a subsidiárias brasileiras, estruturas societárias complexas e, sobretudo, a veículos financeiros.
Um destaque foi o FIAGRO — fundo regulado pela CVM — que permite a participação de investidores não residentes, ampliando a presença de capital estrangeiro no agronegócio sem, necessariamente, aparecer como proprietário de imóvel rural.
Leite apontou ainda a escala global dos recursos voltados a terra e ativos agroindustriais.
Em 2023, havia cerca de 960 fundos especializados em alimentos e agricultura no mundo, número que ajuda a explicar o apetite por terras em países como o Brasil.
Casos, números e impactos no território (Bahia, Piauí, MATOPIBA)
Uma pesquisa da qual Leite participou identificou 224 empresas internacionais com algum grau de controle de terras no Brasil, com predominância de grupos dos EUA, Portugal, Japão e Canadá.
A atuação envolve desde fundos de pensão e endowments universitários até companhias de agronegócio, finanças e mineração.
Em vários casos, essas empresas operam por meio de firmas com nomes nacionais, o que dificulta a identificação nos cadastros.
Exemplos citados no painel incluem a presença de Harvard e do fundo de pensão dos professores norte-americanos (TIAA).
Reportagens e dossiês jornalísticos mostram que estruturas ligadas a esses investidores atuaram na Bahia e no Piauí, com registros de conflitos fundiários, denúncias de grilagem e reestruturações societárias para contornar amarras legais.
As áreas de Cotegipe (BA), associadas à empresa Caracol Agropecuária, e regiões do MATOPIBA, incluindo o sul do Piauí, aparecem em investigações independentes.
O avanço desse capital tem efeitos econômicos e sociais.
De acordo com Leite, a chegada de grandes investidores pressiona o preço da terra muito acima da inflação.
Em Luís Eduardo Magalhães (BA), a valorização acumulada teria atingido 600% entre 2001 e 2020, frente a 230% de inflação no mesmo intervalo.
Além disso, foram relatados deslocamentos forçados de populações rurais e tradicionais, como em São Raimundo Nonato (PI) e Cotegipe (BA).
O professor defendeu uma melhora urgente na capacidade de monitoramento do Estado sobre seu próprio território.
Isso passa por um fortalecimento do Incra, que hoje tem estrutura insuficiente para lidar com esse fenômeno.
FIAGRO e lacunas de transparência
O FIAGRO foi instituído pela Lei 14.130/2021 e consolidado no marco regulatório da CVM 175 e do Anexo VI (Resolução 214/2024).
Ao permitir captação ampla — inclusive de não residentes — e investimentos em imóveis rurais por meio de créditos, arrendamentos ou participação societária, o instrumento facilita o aporte estrangeiro no setor sem exigir aquisição direta de propriedades.
Para especialistas, isso cria zonas cinzentas na mensuração oficial da “propriedade estrangeira” e exige mais transparência na identificação dos cotistas.
Concentração fundiária e soberania
O debate ocorre em um país historicamente marcado por concentração fundiária.
Relatórios reconhecidos indicam que quase metade da área rural está nas mãos de 1% das propriedades, o que aprofunda desigualdades e conflitos no campo.
Pesquisas da Oxfam e análises baseadas em dados do Censo Agropecuário sustentam esse quadro de concentração elevado, ainda que as séries históricas apresentem diferenças metodológicas.
Com as lacunas de informação e a velocidade das operações financeiras, os participantes defenderam fortalecer o Incra e modernizar cadastros oficiais.
A ideia é aperfeiçoar o monitoramento do território e atribuir responsabilidade a quem controla grandes extensões — seja por compra direta, seja por parcerias societárias e fundos de investimento.
Gênero e terra: participação feminina
A advogada Mônica Sapucaia Machado (IDP) trouxe o recorte de gênero.
Ela argumentou que, num cenário de expansão do capital financeiro sobre a terra, mulheres tendem a ser expulsas de postos de trabalho e excluídas das decisões.
A afirmação dialoga com a sub-representação feminina na posse e comando de estabelecimentos rurais no Brasil, evidenciada em levantamentos recentes.
Estudos internacionais, por outro lado, apontam que a frase amplamente difundida de que “mulheres detêm apenas 1% da terra no mundo” é controversa e carece de base comparável entre países.
No Brasil, recortes estatísticos mostram participação feminina bem inferior à masculina, mas acima desse patamar globalizado.
Caminhos regulatórios para proteger a soberania fundiária
Para Mônica Sapucaia Machado e outros juristas, o desafio é proteger a soberania fundiária sem frear o desenvolvimento.
Isso passa por regras claras de transparência para fundos, travas efetivas a estruturas que maquiam a origem do capital e ferramentas de governança que considerem o território como bem público estratégico.
A diretriz, resumem, é alinhar desenvolvimento, democracia e descolonização do debate sobre terras na América Latina.
Se mecanismos financeiros permitem o controle de imensas áreas sem que isso apareça como “propriedade estrangeira”, qual deve ser a prioridade do poder público: mapear quem manda, limitar o avanço por meio de fundos ou rever toda a política de acesso e uso da terra?