O Brasil perde valor com energia solar e eólica por limitações de transmissão, ausência de armazenamento e cortes técnicos de segurança, enquanto o sistema convive com sobreoferta em horários críticos, usinas centralizadas interrompidas e um debate urgente sobre expansão da rede, baterias e uso produtivo do excedente
A energia solar e eólica avançou rápido e colocou à prova a infraestrutura elétrica do país. Quando o vento e o sol entregam muito ao mesmo tempo, a rede não escoa tudo, e parte da geração é cortada por decisão técnica para preservar a segurança do sistema. Na prática, energia limpa é literalmente descartada, sem chegar ao consumo.
Conforme reportagem da E4, os cortes de geração, conhecidos como curtailment, cresceram com a entrada de novos parques e o aumento da variabilidade na operação. Em 2025, o setor relata perdas bilionárias e decisões de investimento sendo reavaliadas. O efeito imediato é deteriorar a confiança de quem financia usinas e pressiona por respostas coordenadas em transmissão, armazenamento e gestão de demanda.
O que é o curtailment e por que acontece
Curtailment é o corte obrigatório de geração decidido pela operação do sistema. Ele ocorre por três razões principais. A primeira é indisponibilidade externa: falta de linhas, transformadores ou equipamentos de subestações impede o escoamento. A segunda é confiabilidade: mesmo com capacidade aparente, a operação reduz a injeção para não sobrecarregar ativos críticos. A terceira é energética: há sobreoferta no instante, com mais energia entrando na rede do que a carga consegue consumir naquele momento.
-
UFSC aposta em energia solar com sistema agrivoltaico pioneiro que une produção agrícola e geração limpa em Santa Catarina
-
Urina vira fertilizante sustentável: pesquisadores criam sistema inovador movido a energia solar no qual o líquido pode ajudar a reduzir emissões de carbono
-
Homem leva multa de R$ 15 mil e perde desconto da energia solar depois de colocar mais placas sem avisar a empresa; começou a pagar a ‘taxação do sol’
-
Projeto Solar Butterfly chega ao campus Viçosa em parceria com UFV+Sustentável
Em resumo, não é um problema da usina isolada, mas do conjunto rede mais demanda. Quanto mais concentrada geograficamente a geração variável, maior o risco de excesso simultâneo. E quando a infraestrutura não acompanha o ritmo de conexão, o desligamento passa a ser a única válvula de escape.
Os cortes afetam sobretudo as usinas centralizadas de grande porte, despachadas e monitoradas pelo operador do sistema. Projetos eólicos e solares veem sua receita cair justamente nas horas em que deveriam capturar melhor preço, o que altera projeções e alonga payback.
O impacto não é apenas financeiro. Cada corte adia metas de descarbonização, reduz previsibilidade e pode paralisar novos leilões e expansões. Na outra ponta, o consumidor perde a oportunidade de preços mais baixos quando haveria abundância de geração limpa.
Por que a rede não escoa o que é gerado
A malha de transmissão foi planejada para perfis históricos de geração. A nova fronteira de vento e sol se expandiu mais rápido do que o reforço de linhas, criando gargalos entre polos de geração e centros de carga. Além disso, a variabilidade exige folgas operativas que, em certos momentos, forçam o operador a limitar injeções para manter margens de segurança.
Sem armazenamento em escala e com carga menos flexível, o sistema fica rígido. Quando o vento sopra forte e o sol está alto, mas a demanda está baixa, a consequência é o corte técnico de usinas renováveis.
Não há bala de prata. O caminho combina frentes complementares. Primeiro, acelerar e modernizar a transmissão, conectando polos de geração às regiões de consumo com folgas operativas adequadas. Segundo, destravar o armazenamento com baterias em larga escala, capazes de guardar excedentes e devolver energia nas horas de pico.
Terceiro, ativar resposta da demanda: indústrias e grandes consumidores podem deslocar processos para janelas de abundância solar e eólica. Quarto, estimular usos produtivos do excedente, como data centers e outras cargas intensivas em regiões de alta geração. Cada ponto reduz a frequência e a severidade dos cortes.
E a geração distribuída no telhado
Pelo desenho atual, a micro e a minigeração distribuída não sofrem curtailment. O foco das reduções recai nas usinas centralizadas e em ativos maiores conectados à distribuição fora do sistema de compensação. Para quem tem painel no telhado, o risco é hoje considerado improvável, mas o debate técnico sobre flexibilidade e armazenamento também interessa a esse público no médio prazo.
A discussão que importa é como transformar a abundância em benefício local. Baterias residenciais e comerciais, somadas a tarifas horárias bem desenhadas, podem elevar o autoconsumo em horas de excesso e aliviar o sistema.
Quanto mais recorrentes os cortes, maior o risco de projetos travarem, sobretudo em fases finais de financiamento. Ao mesmo tempo, há uma janela para reposicionar a política setorial: linhas entregues no prazo, sinal econômico para armazenamento e regras claras de resposta da demanda. A energia solar e eólica já mostrou escala e custo competitivo. Falta capturar esse valor todos os dias, em todas as horas.
Se a coordenação funcionar, o país reduz perdas, estabiliza receitas e acelera metas climáticas. Se não, seguirá descartando energia limpa e encarecendo o risco Brasil no segmento renovável.
O que acompanhar daqui em diante
Vale monitorar três vetores. Obras de transmissão em corredores críticos e prazos de entrada em operação. Modelos de remuneração para baterias, permitindo receita por serviços de rede e arbitragem de energia. Programas de resposta da demanda para grandes consumidores, com sinal de preço por horário que incentive deslocamento de carga.
A energia solar e eólica seguirá crescendo. A diferença entre desperdício e valor está na capacidade do sistema de absorver a variabilidade com rede, armazenamento e flexibilidade do lado do consumo.
O Brasil precisa converter picos de geração em valor. Com transmissão reforçada, baterias e demanda flexível, a energia solar e eólica deixa de ser cortada e passa a baratear a conta, reduzir emissões e sustentar novos investimentos.
Você trabalha no setor elétrico, em usina, indústria ou distribuidora? Na sua região, os cortes atingem quais horários e qual foi o impacto real em receita ou operação? Conte nos comentários cidade, perfil de carga ou geração e que medida prática teria maior efeito imediato no seu caso.